Conferência Geral do Episcopado Latino Americano e do CaribeAparecida, 13-31 de maio de 2007Documento Final
Introdução
1. Com a luz do Senhor ressuscitado e com a força do Espírito Santo, nós os bispos da América nos reunimos em Aparecida, Brasil, para celebrar a V Conferência Geral do Episcopado Latino Americano e do Caribe. Fizemos isso como pastores que querem seguir estimulando a ação evangelizadora da Igreja, chamada a fazer de todos os seus membros discípulos e missionários de Cristo, Caminho, Verdade e Vida para que nossos povos tenham vida n’Ele. Fazemos isso em comunhão com todas as Igrejas locais presentes na América. Maria, Mãe de Jesus Cristo e de seus discípulos, tem estado muito perto de nós, tem-nos acolhido, tem cuidado de nós e de nossos trabalhos, amparando-nos, como a João Diego e a nossos povos, na dobra de seu manto, sob sua maternal proteção. Temos pedido a ela, como mãe, perfeita discípula e pedagoga da evangelização, que nos ensine a ser filhos em seu Filho e a fazer o que Ele nos disser (cf. Jo 2,5).
2. Com alegria estivemos reunidos com o Sucessor de Pedro, Cabeça do Colégio Episcopal. Sua Santidade Bento XVI confirmou-nos no primado da fé em Deus, de sua verdade e amor, para o bem das pessoas e dos povos. Agradecemos a todos os seus ensinamentos, que foram iluminação e guia seguro para nossos trabalhos, especialmente, seu Discurso inaugural. A lembrança agradecida dos últimos Papas, e em especial por seu rico Magistério que têm estado também presente em nossos trabalhos, merece especial memória e gratidão.
3. Sentimo-nos acompanhados pela oração de nosso povo católico, representado visivelmente pela companhia do Pastor e dos fiéis da Igreja de Deus em Aparecida e pela multidão de peregrinos de todo Brasil e de outros países da América ao Santuário, que nos edificaram e evangelizaram. Na comunhão dos santos, tivemos presente todos aqueles que nos antecederam como discípulos e missionários na vinha do Senhor e especialmente a nossos santos latino-americanos, entre eles Santo Toríbio de Mogrovejo, patrono do Episcopado latino-americano.
4. O Evangelho chegou a nossas terras em meio a um dramático e desigual encontro de povos e culturas. As “sementes do Verbo”1 presentes nas culturas autóctones, facilitaram a nossos irmãos indígenas encontrarem no Evangelho respostas vitais às suas aspirações mais profundas: “Cristo era o Salvador que esperavam silenciosamente”2. A visitação de Nossa Senhora de Guadalupe foi acontecimento decisivo para o anúncio e reconhecimento de seu Filho, pedagogia e sinal de inculturação da fé, manifestação e renovado ímpeto missionário de propagação do Evangelho3.
5. Desde a primeira evangelização até os tempos recentes a Igreja tem experimentado luzes e sombras4. Ela escreveu páginas de nossa história com grande sabedoria e santidade. Sofreu também tempos difíceis, tanto por perseguições como pelas debilidades, compromissos mundanos e incoerências, em outras palavras, pelo pecado de seus filhos, que confundiram a novidade do Evangelho, a luminosidade da verdade e a prática da justiça e da caridade. No entanto, o mais decisivo na Igreja é sempre a ação santa de seu Senhor.
6. Por isso, diante de tudo damos graças a Deus e o louvamos por tudo o que nos tem sido dado. Acolhemos a toda a realidade do Continente como um dom: a beleza e fecundidade de suas terras, a riqueza de humanidade que se expressa nas pessoas, famílias, povos e culturas do Continente. Sobretudo, nos tem sido dado Jesus Cristo, a plenitude da revelação de Deus, um tesouro incalculável, a “pérola preciosa” (cf. Mt 13,45-46). Verbo de Deus feito carne, Caminho, Verdade e Vida dos homens e das mulheres aos quais abre um destino de plena justiça e felicidade. Ele é o único Libertador e Salvador que, com sua morte e ressurreição, rompeu as cadeias opressivas do pecado e da morte, revelando o amor misericordioso do Pai e a vocação, dignidade e destino da pessoa humana.
7. As maiores riquezas de nossos povos são a fé no Deus de amor e a tradição católica na vida e na cultura. Manifesta-se na fé madura de muitos batizados e na piedade popular que expressa “o amor a Cristo sofredor, o Deus da compaixão, do perdão e da reconciliação (...), o amor ao Senhor presente na Eucaristia (...), - o Deus próximo dos pobres e dos que sofrem, - a profunda devoção à Santíssima Virgem de Guadalupe, de Aparecida ou dos diversos nomes nacionais e locais”5. Expressa-se também na caridade que em todas as partes anima gestos, obras e caminhos de solidariedade para com os mais necessitados e desamparados. Está presente também na consciência da dignidade da pessoa, na sabedoria diante da vida, na paixão pela justiça, na esperança contra toda esperança e na alegria de viver que move o coração de nosso povo, ainda que em condições muito difíceis. As raízes católicas permanecem na arte, linguagem, tradições e estilo de vida do povo, ao mesmo tempo dramático e festivo e no enfrentamento da realidade. Por isso, o Santo padre nos responsabilizou ainda mais, como Igreja, da “grande tarefa de proteger e alimentar a fé do povo de Deus”6.
8. O dom da tradição católica é um cimento fundamental de identidade, originalidade e unidade da América latina e do caribe: uma realidade histórico-cultural, marcada pelo Evangelho de Cristo, realidade na qual abunda o pecado – abandono de Deus, comportamentos viciosos, de opressão, violência, ingratidões e misérias – porém, onde superabunda a graça da vitória pascal. Nossa Igreja goza, não obstante as debilidades e misérias humanas, de um alto índice de confiança e de credibilidade por parte do povo. A Igreja é morada de povos irmãos e casa dos pobres.
9. A V Conferência do Episcopado Latino-americano e Caribenho é um novo passo no caminho da Igreja, especialmente desde o Concílio Ecumênico Vaticano II. Ela dá continuidade e, ao mesmo tempo, recapitula o caminho de fidelidade, renovação e evangelização da Igreja latino-americanas a serviço de seus povos, que se expressou oportunamente nas Conferências Gerais anteriores do Episcopado (Rio, 1955; Medellín, 1968; Puebla, 1979; Santo Domingo, 1992). Em todas elas reconhecemos a ação do Espírito. Também nos lembramos da Assembléia Especial do Sínodo dos Bispos para América (1997).
10. Esta V Conferência se propõe “à grande tarefa de conservar e alimentar a fé do povo de Deus e recordar também aos fiéis deste continente que, em virtude de seu batismo, são chamados a serem discípulos e missionários de Jesus Cristo”7. Com desafios e exigências, abre-se passagem para um novo período da história, caracterizado pela desordem generalizada que se propaga por novas turbulências sociais e políticas, pela difusão de uma cultura distante e hostil à tradição cristã e pela emergência de variadas ofertas religiosas que tratam de responder, a sua maneira, à sede de Deus que nossos povos manifestam.
11. A Igreja é chamada a repensar profundamente e a relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias latino-americanas e mundiais. Ela não pode fechar-se àqueles que trazem confusão, perigos e ameaças ou àqueles que pretendem cobrir a variedade e complexidade das situações com uma capa de ideologias gastas ou de agressões irresponsáveis. Trata-se de confirmar, renovar e revitalizar a novidade do Evangelho arraigada em nossa história, a partir de um encontro pessoal e comunitário com Jesus Cristo, que desperte discípulos e missionários. Isso não depende de grandes programas e estruturas, mas de homens e mulheres novos que encarnem essa tradição e novidade, como discípulos de Jesus Cristo e missionários de seu reino, protagonistas de uma vida nova para uma América Latina que deseja se reconhecer com a luz e a força do Espírito.
12. Uma fé católica reduzida a conhecimento, a um elenco de algumas normas e de proibições, a práticas de devoção fragmentadas, a adesões seletivas e parciais das verdades da fé, a uma participação ocasional em alguns sacramentos, à repetição de princípios doutrinais, a moralismos brandos ou crispados que não convertem a vida dos batizados, não resistiria aos embates do tempo. Nossa maior ameaça “é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja na qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez”8. A todos nos toca “recomeçar a partir de Cristo”9, reconhecendo que “não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande idéia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva”10.
13. Na América Latina e no Caribe, quando muitos de nossos povos se preparam para celebrar o bi-centenário de sua independência, encontramo-nos diante do desafio de revitalizar nosso modo de ser católico e nossas opções pessoais pelo Senhor, para que a fé cristã se estabeleça mais profundamente no coração das pessoas e dos povos latino-americanos como acontecimento fundante e encontro vivificante com Cristo, manifestado como novidade de vida e de missão de todas as dimensões da existência pessoal e social. Isto requer, a partir de nossa identidade católica, uma evangelização muito mais missionária, em diálogo com todos os cristãos e a serviço de todos os homens. Do contrário, “o rico tesouro do Continente Americano... seu patrimônio mais valioso: a fé no Deus de amor...”11 corre os risco de seguir desgastando-se e diluindo-se de maneira crescente em diversos setores da população. Hoje se considera escolher entre caminhos que conduzem à vida ou caminhos que conduzem à morte (cf. Dt 30.15). Caminhos de morte são os que levam a dilapidar os bens que recebemos de Deus através daqueles que nos precederam na fé. São caminhos que traçam uma cultura sem Deus e sem seus mandamentos ou inclusive contra Deus, animada pelos ídolos do poder, da riqueza e do prazer efêmero, a qual termina sendo uma cultura contra o ser humano e contra o bem dos povos latino-americanos. Os caminhos de vida verdadeira e plena para todos, caminhos de vida eterna, são aqueles abertos pela fé que conduzem à “plenitude de vida que Cristo nos trouxe: com esta vida divina, também se desenvolve em plenitude a existência humana, em sua dimensão pessoal, familiar, social e cultural”12. Essa é a vida que Deus nos participa por seu amor gratuito, porque “é o amor que dá a vida”13. Estes caminhos frutificam nos dons de verdade e de amor que nos foram dados em Cristo, na comunhão dos discípulos e missionários do Senhor, para que América Latina e Caribe sejam efetivamente um continente no qual a fé, a esperança e o amor renovem a vida das pessoas e transformem as culturas dos povos.
14. O Senhor nos disse: “não tenham medo” (Mt 28,5). Como às mulheres na manhã da Ressurreição nos é repetido: “Por que buscam entre os mortos aquele que está vivo?” (Lc 24,5). Os sinais da vitória de Cristo ressuscitado nos estimulam enquanto suplicamos a graça da conversão e mantemos viva a esperança que não defrauda. O que nos define não são as circunstâncias dramáticas da vida, nem os desafios da sociedade ou as tarefas que devemos empreender, mas todo o amor recebido do Pai, graças a Jesus Cristo pela unção do Espírito Santo. Esta prioridade fundamental é a que tem presidido todos os nossos trabalhos que oferecemos a Deus, à nossa Igreja, a nosso povo, a cada um dos latino-americanos, enquanto elevamos ao Espírito Santo nossa súplica para que redescubramos a beleza e a alegria de ser cristãos. Aqui está o desafio fundamental que contrapomos: mostrar a capacidade da Igreja de promover e formar discípulos que respondam à vocação recebida e comuniquem em todas as partes, transbordando de gratidão e alegria, o dom do encontro com Jesus Cristo. Não temos outro tesouro a não ser este. Não temos outra felicidade nem outra prioridade que não seja sermos instrumentos do Espírito de Deus na Igreja, para que Jesus Cristo seja encontrado, seguido, amado, adorado, anunciado e comunicado a todos, não obstante todas as dificuldades e resistências. Este é o melhor serviço – seu serviço! – que a Igreja tem que oferecer às pessoas e nações14.
15. Nesta hora em que renovamos a esperança, queremos fazer nossas as palavras de SS. Bento XVI no início de seu Pontificado, fazendo eco a seu predecessor, o Servo de Deus, João Paulo II, e proclamá-las para toda a América Latina: Não temam! Abram, abram de par em par as portas a Cristo!... quem deixa Cristo entrar a não perde nada, nada – absolutamente nada – do que faz a vida livre, bela e grande. Não! Só com esta amizade abrem-se as portas da vida. Só com esta amizade abrem-se realmente as grandes potencialidades da condição humana. Só com esta amizade experimentamos o que é belo e o que nos liberta... Não tenham medo de Cristo! Ele não tira nada e nos dá tudo. Quem se dá a Ele, recebe cem por um. Sim, abram, abram de par em par as portas a Cristo e encontrarão a verdadeira vida15.
16. “Esta V Conferência Geral celebra-se em continuidade com as outras quatro que a precederam no Rio de Janeiro, Medellín, Puebla e Santo Domingo. Com o mesmo espírito que as animou, os pastores querem dar agora um novo impulso à evangelização, a fim de que estes povos sigam crescendo e amadurecendo em sua fé, para serem luz do mundo e testemunhas de Jesus Cristo com sua própria vida”16. Como pastores da Igreja estamos conscientes de que “depois da IV Conferência Geral, em Santo Domingo, muitas coisas mudaram na sociedade. A Igreja, que participa dos gozos e esperanças, das tristezas e alegrias de seus filhos, quer caminhar ao seu lado neste período de tantos desafios, para infundir-lhes sempre esperança e consolo”17.
17. Nossa alegria, portanto, baseia-se no amor do Pai, na participação no mistério pascal de Jesus cristo que, pelo Espírito Santo, faz-nos passar da morte para a vida, da tristeza para a alegria, do absurdo para o sentido profundo da existência, do desalento para a esperança que não engana. Esta alegria não é um sentimento artificialmente provocado nem um estado de ânimo passageiro. O amor do Pai nos foi revelado em Cristo que nos convida a entrar em seu reino. Ele nos ensinou a orar dizendo “Abba, Pai” (Rm 8,15; cf. Mt 6,9).
18. Conhecer a Jesus Cristo pela fé é nossa alegria; segui-lo é uma graça, e transmitir este tesouro aos demais é uma tarefa que o Senhor, ao nos chamar e nos eleger, nos confiou. Com os olhos iluminados pela luz de Jesus Cristo ressuscitado podemos e queremos contemplar o mundo, a história, os nossos povos da América Latina e do Caribe e cada um de seus habitantes.
PRIMEIRA PARTEA VIDA DE NOSSOS POVOS HOJE
19. Em continuidade com as Conferências Gerais anteriores do Episcopado Latino-americano, este documento faz uso do método “ver, julgar e agir”. Este método implica em contemplar a Deus com os olhos da fé através de sua Palavra revelada e o contato vivificador dos Sacramentos, a fim de que, na vida cotidiana, vejamos a realidade que nos circunda à luz de sua providência e a julguemos segundo Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida, e atuemos a partir da Igreja, Corpo Místico de Cristo e Sacramento universal de salvação, na propagação do Reino de Deus, que se semeia nesta terra e que frutifica plenamente no Céu. Muitas vozes, vindas de todo o Continente ofereceram contribuições e sugestões nesse sentido, afirmando que este método tem colaborado para que vivamos mais intensamente nossa vocação e missão na Igreja: tem enriquecido nosso trabalho teológico e pastoral e, em geral, tem-nos motivado a assumir nossas responsabilidades diante das situações concretas de nosso continente. Este método nos permite articular, de modo sistemático, a perspectiva cristã de ver a realidade; a assunção de critérios que provêm da fé e da razão para seu discernimento e valorização, com sentido crítico; e, em conseqüência, a projeção do agir como discípulos missionários de Jesus Cristo. A adesão crente, alegre e confiada no Deus Pai, Filho e Espírito Santo e a inserção eclesial, são pressupostos indispensáveis que garantem a eficácia deste método18.
CAPÍTULO 1OS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS
20. Nossa reflexão a respeito do caminho das Igrejas da América Latina e do Caribe tem lugar em meio à luzes e sombras de nosso tempo. Afligem-nos, mas não nos confundem, as grandes mudanças que experimentamos. Temos recebido dons incalculáveis, que nos ajudam a olhar a realidade como discípulos missionários de Jesus Cristo.
21. A presença cotidiana e cheia de esperança de incontáveis peregrinos nos lembra dos primeiros seguidores de Jesus Cristo que foram ao Jordão, onde João batizava, com a esperança de encontrar o Messias (cf. Mc 1,5). Eles se sentiram atraídos pela sabedoria das palavras de Jesus, pela bondade de seu trato e pelo poder de seus milagres. E pelo assombro inusitado que a pessoa de Jesus despertava, acolheram o dom da fé e vieram a ser discípulos de Jesus. Ao sair das trevas e das sombras de morte (cf. Lc 1,79) a vida deles adquiriu uma plenitude extraordinária: a de haver sido enriquecida com o dom do Pai. Viveram a história de seu povo e de seu tempo e passaram pelos caminhos do Império Romano, sem esquecer o encontro mais importante e decisivo de sua vida que os havia preenchido de luz, de força e de esperança: o encontro com Jesus, sua rocha, sua paz, sua vida.
22. Assim também nos ocorre olhar a realidade de nossos povos e de nossa Igreja, com seus valores, suas limitações, suas angústias e esperanças. Enquanto sofremos e nos alegramos, permanecemos no amor de Cristo, vendo nosso mundo e procurando discernir seus caminhos com a alegre esperança e a indizível gratidão de crer em Jesus Cristo. Ele é o Filho de Deus verdadeiro, o único Salvador da humanidade. A importância única e insubstituível de Cristo para nós, para a humanidade, consiste em que Cristo é o caminho, a Verdade e a Vida. “Se não conhecemos a Deus em Cristo e com Cristo, toda a realidade se torna um enigma indecifrável; não há caminho e, ao não haver caminho, não há vida nem verdade”19. No clima cultural relativista que nos circunda, onde é aceita só uma religião natural, faz-se sempre mais importante e urgente estabelecer e fazer amadurecer em todo o corpo eclesial a certeza de que Cristo, o Deus de rosto humano, é nosso verdadeiro e único salvador.
23. Neste encontro, queremos expressar a alegria de sermos discípulos do Senhor e de termos sido enviados com o tesouro do Evangelho. Ser cristão não é uma carga, mas um dom: Deus Pai nos abençoou em Jesus Cristo seu Filho, Salvador do mundo.
1.1. Ação de graças a Deus
24. Bendito seja Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda sorte de bênçãos na pessoa de Cristo (cf. Ef 1,3). O Deus da Aliança, rico em misericórdia, nos amou primeiro; imerecidamente amou a cada um de nós; por isso o bendizemos, animados pelo Espírito Santo, Espírito vivificador, alma e vida da Igreja. Ele, que foi derramado em nossos corações, geme e intercede por nós e, com seus dons nos fortalece em nosso caminho de discípulos e missionários.
25. Bendizemos a Deus com ânimo agradecido, porque nos chamou para sermos instrumentos de seu reino de amor e de vida, de justiça e de paz, pelo qual tantos se sacrificaram. Ele mesmo nos encomendou a obra de suas mãos para que cuidemos dela e a coloquemos a serviço de todos. Agradecemos a Deus por nos fazer seus colaboradores para que sejamos solidários com sua criação pela qual somos responsáveis. Bendizemos a Deus que nos deu a natureza criada que é seu primeiro livro para possamos conhecer a Ele e viver nela como em nossa casa.
26. Damos graças a Deus que nos deu o dom da palavra, com a qual podemos nos comunicar entre nós e com Ele por meio de seu Filho, que é sua Palavra (cf. Jo 1,1). Damos graças a Ele que, por seu grande amor fala a nós como a amigos (cf. Jo 15,14-15). Bendizemos a Deus que se nos dá na celebração da fé, especialmente na Eucaristia, pão de vida eterna. A ação de graças a Deus pelos numerosos e admiráveis dons que nos outorgou culmina na celebração central da Igreja, que é a Eucaristia, alimento substancial dos discípulos e missionários. Também pelo Sacramento do Perdão de Cristo que nos alcançou na cruz. Louvamos ao Senhor Jesus pelo presente de sua Mãe Santíssima, Mãe de Deus e Mãe da Igreja na América Latina e do Caribe, estrela da evangelização renovada, primeira discípula e grande missionária de nossos povos.
1.2. A alegria de ser discípulos e missionários de Jesus Cristo
27. Iluminados pelo Cristo, o sofrimento, a injustiça e a cruz nos desafiam a viver como Igreja samaritana (cf. Lc 10,25-37), recordando que “a evangelização vai unida sempre à promoção humana e à autêntica libertação cristã”20. Damos graças a Deus e nos alegramos pela fé, solidariedade e alegria características de nossos povos, transmitidas ao longo do tempo pelas avós e avôs, as mães e pais, os catequistas, os rezadores e tantas pessoas anônimas, cuja caridade mantém viva a esperança em meio às injustiças e adversidades.
28. A Bíblia mostra reiteradamente que, quando Deus criou o mundo com sua Palavra, expressou satisfação, dizendo que era “bom” (Gn 1,21), e quando criou o ser humano, homem e mulher, disse que “era muito bom” (Gn 1,31). O mundo criado por Deus é belo. Procedemos de um desígnio divino de sabedoria e amor. Mas, através do pecado esta beleza originária foi desonrada e esta bondade ferida. Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, em seu mistério pascal, recriou o homem fazendo-o filho e dando a ele a garantia de novos céus e de uma nova terra (cf. Ap 21,1). Levamos a imagem do primeiro Adão, mas somos chamados também, desde o princípio, a produzir a imagem de Jesus Cristo, novo Adão (cf. 1 Cor 15,45). A criação leva a marca do Criador e deseja ser libertada e “participar na gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8,21).
1.3. A missão da Igreja é evangelizar
29. A história da humanidade, história que Deus nunca abandona, transcorre sob seu olhar compassivo. Deus amou tanto nosso mundo que nos deu seu Filho. Ele anuncia a boa nova do Reino aos pobres e aos pecadores. Por isso, nós, como discípulos e missionários de Jesus, queremos e devemos proclamar o Evangelho, que é o próprio Cristo. Anunciamos a nossos povos que Deus nos ama, que sua existência não é uma ameaça para o homem, que Ele está perto com o poder salvador e libertador de seu Reino, que Ele nos acompanha na tribulação, que alenta incessantemente nossa esperança em meio a todas as provas. Os cristãos são portadores de boas novas para a humanidade, não profetas de desventuras.
30. A Igreja deve cumprir sua missão seguindo os passos de Jesus e adotando suas atitudes (cf. Mt 9,35-36). Ele, sendo o Senhor, fez-se servo e obediente até a morte de cruz (cf. Fl 2,8); sendo rico, escolheu ser pobre por nós (cf. 2 Cor 8,9), ensinando-nos o caminho de nossa vocação de discípulos e missionários. No Evangelho aprendemos a sublime lição de ser pobres seguindo a Jesus pobre (cf. Lc 6,20; 9,58), e a de anunciar o Evangelho da paz sem bolsa ou alforje, sem colocar nossa confiança no dinheiro nem no poder deste mundo (cf. Lc 10,4 ss). Na generosidade dos missionários se manifesta a generosidade de Deus, na gratuidade dos apóstolos aparece a gratuidade do Evangelho.
31. No rosto de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, maltratado por nossos pecados e glorificado pelo Pai, nesse rosto doente e glorioso21, com o olhar da fé podemos ver o rosto humilhado de tantos homens e mulheres de nossos povos e, ao mesmo tempo, sua vocação à liberdade dos filhos de Deus, à plena realização de sua dignidade pessoal e à fraternidade entre todos. A Igreja está a serviço de todos os seres humanos, filhos e filhas de Deus.
32. Desejamos que a alegria que recebemos no encontro com Jesus Cristo, a quem reconhecemos como o Filho de Deus encarnado e redentor, chegue a todos os homens e mulheres feridos pelas adversidades; desejamos que a alegria da boa nova do Reino de Deus, de Jesus Cristo vencedor do pecado e da morte, chegue a todos quantos jazem à beira do caminho, pedindo esmola e compaixão (cf. Lc 10,29-37; 18,25-43). A alegria do discípulo é antídoto frente a um mundo atemorizado pelo futuro e agoniado pela violência e pelo ódio. A alegria do discípulo não é um sentimento de bem-estar egoísta, mas uma certeza que brota da fé, que serena o coração e capacita para anunciar a boa nova do amor de Deus. Conhecer a Jesus é o melhor presente que qualquer pessoa pode receber; tê-lo encontrado foi o melhor que ocorreu em nossas vidas, e fazê-lo conhecido com nossa palavra e obras é nossa alegria.
CAPÍTULO 2OLHAR DOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS SOBRE A REALIDADE
2.1 A realidade que nos desafia como discípulos e missionários
33. Os povos da América Latina e do Caribe vivem hoje uma realidade marcada por grandes mudanças que afetam profundamente suas vidas. Como discípulos de Jesus Cristo, sentimo-nos desafiados a discernir os “sinais dos tempos”, à luz do Espírito Santo, para nos colocar a serviço do Reino, anunciado por Jesus, que veio para que todos tenham vida e “para que a tenham em abundância” (Jo 10,10).
34. A novidade destas mudanças, diferentemente do ocorrido em outras épocas, é que elas têm um alcance global que, com diferenças e matizes, afetam o mundo inteiro. Habitualmente elas são caracterizadas como o fenômeno da globalização. Um fator determinante destas mudanças é a ciência e a tecnologia, com sua capacidade de manipular geneticamente a própria vida dos seres vivos, e com sua capacidade de criar uma rede de comunicações de alcance mundial, tanto pública como privada, para interagir em tempo real, ou seja, com simultaneidade, não obstante as distâncias geográficas. Como se costuma dizer, a história se acelerou e as próprias mudanças se tornam vertiginosas, visto que se comunica com grande velocidade a todos os cantos do planeta.
35. Esta nova escala mundial do fenômeno humano traz conseqüências em todos os campos de atividade da vida social, impactando a cultura, a economia, a política, as ciências, a educação, o esporte, as artes e também, naturalmente, a religião. Interessa-nos, como pastores da Igreja, saber como este fenômeno afeta a vida de nossos povos e o sentido religioso e ético de nossos irmãos que buscam infatigavelmente o rosto de Deus, e que, no entanto, devem fazê-lo, agora desafiados por novas linguagens do domínio técnico, que nem sempre revelam, mas que também ocultam o sentido divino da vida humana redimida em Cristo. Sem uma clara percepção do mistério do Deus, o desígnio amoroso e paternal de uma vida digna para todos os seres humanos torna-se opaco também.
36. Neste novo contexto social, a realidade para o ser humano se tornou cada vez mais sem brilho e complexa. Isto quer dizer que qualquer pessoa individual necessita sempre mais informação se deseja exercer sobre a realidade o senhorio a que, por vocação, está chamada. Isto tem nos ensinado a olhar a realidade com mais humildade, sabendo que ela é maior e mais complexa que as simplificações com que costumávamos vê-la em um passado ainda não muito distante e que, em muitos casos, introduziram conflitos na sociedade, deixando muitas feridas que ainda não conseguiram cicatrizar. Também se tornou difícil perceber a unidade de todos os fragmentos dispersos que resultam da informação que reunimos. É freqüente que alguns queiram olhar a realidade unilateralmente a partir da informação econômica, outros a partir da informação política ou científica, outros a partir do entretenimento ou do espetáculo. No entanto, nenhum destes critérios parciais consegue nos propor um significado coerente para tudo o que existe. Quando as pessoas percebem esta fragmentação e limitação, costumam se sentir frustradas, ansiosas, angustiadas. A realidade social parece muito grande para uma consciência que, levando em consideração sua falta de saber e de informação, facilmente se crê insignificante, sem ingerência alguma nos acontecimentos, mesmo quando soma sua voz a outras vozes que procuram se ajudar reciprocamente.
37. Esta é a razão pela qual muitos estudiosos de nossa época sustentam que a realidade traz inseparavelmente uma crise do sentido. Eles não se referem aos múltiplos sentidos parciais que cada um pode encontrar nas ações cotidianas que realiza, mas ao sentido que dá unidade a tudo o que existe e nos sucede na experiência, e que os cristãos chamam de sentido religioso. Habitualmente, este sentido se coloca a nossa disposição através de nossas tradições culturais que representam a hipótese de realidade com que cada ser humano pode olhar o mundo em que vive. Em nossa cultura latino-americana e caribenha conhecemos o papel tão nobre e orientador que a religiosidade popular desempenha, especialmente a devoção mariana, que contribuiu para nos tornar mais conscientes de nossa comum condição de filhos de Deus e de nossa comum dignidade perante seus olhos, não obstante as diferenças sociais, étnicas ou de qualquer outro tipo.
38. No entanto, devemos admitir que esta preciosa tradição começa a se diluir. A maioria dos meios de comunicação de massa nos apresentam agora novas imagens, atrativas e cheias de fantasia. Ainda que todos saibam que elas não podem mostrar o sentido unitário de todos os fatores da realidade, oferecem ao menos o consolo de ser transmitidas em tempo real, ao vivo e direto, com atualidade. Longe de preencher o vazio produzido em nossa consciência pela falta de um sentido unitário da vida, em muitas ocasiões a informação transmitida pelos meios só nos distrai. A falta de informação só se resolve com mais informação, retro-alimentando a ansiedade de quem percebe que está em um mundo opaco o qual não compreende.
39. Este fenômeno talvez explique um dos fatos mais desconcertantes e originais que vivemos no presente. Nossas tradições culturais já não se transmitem de uma geração à outra com a mesma fluidez que no passado. Isso afeta, inclusive, esse núcleo mais profundo de cada cultura, constituído pela experiência religiosa, que parece agora igualmente difícil de ser transmitido através da educação e da beleza das expressões culturais, alcançando inclusive a própria família que, como lugar do diálogo e da solidariedade inter-geracional, havia sido um dos veículos mais importantes da transmissão da fé. Os meios de comunicação invadiram todos os espaços e todas as conversas, introduzindo-se também na intimidade do lar. Ao lado da sabedoria das tradições, em competição, localizam-se agora a informação de último minuto, a distração, o entretenimento, as imagens dos vencedores que souberam usar a seu favor as ferramentas tecnológicas e as expectativas de prestígio e estima social. Isso faz com que as pessoas busquem denodadamente uma experiência de sentido que preencha as exigências de sua vocação, ali onde nunca poderão encontrá-la.
40. Entre os pressupostos que enfraquecem e menosprezam a vida familiar encontramos a ideologia de gênero, segundo a qual cada um pode escolher sua orientação sexual, sem levar em consideração as diferenças dadas pela natureza humana. Isto tem provocado modificações legais que ferem gravemente a dignidade do matrimônio, o respeito ao direito à vida e a identidade da família22.
41. Por esta razão, os cristãos precisam recomeçar a partir de Cristo, a partir da contemplação de quem nos revelou em seu mistério a plenitude do cumprimento da vocação humana e de seu sentido. Necessitamos nos fazer discípulos dóceis, para aprende d’Ele, em seu seguimento, a dignidade e a plenitude de vida. E necessitamos, ao mesmo tempo, que o zelo missionário nos consuma para levar ao coração da cultura de nosso tempo aquele sentido unitário e completo da vida humana que nem a ciência, nem a política, nem a economia nem os meios de comunicação poderão proporcionar. Em Cristo Palavra, Sabedoria de Deus (cf. 1 Cor 1,30), a cultura pode voltar a encontrar seu centro e sua profundidade, a partir de onde é possível olhar a realidade no conjunto de todos seus fatores, discernindo-os à luz do Evangelho e dando a cada um seu lugar e sua dimensão adequada.
42. Como nos disse o Papa em seu discurso inaugural: “só quem reconhece a Deus, conhece a realidade e pode responder a ela de modo adequado e realmente humano”23. A sociedade que coordena suas atividades só mediante múltiplas informações, acredita que pode operar de fato como se Deus não existisse. Mas a eficácia dos procedimentos conseguida mediante a informação, ainda que com as tecnologias mais desenvolvidas, não consegue satisfazer o desejo de dignidade inscrito no mais profundo da vocação humana. Por isso, não basta supor que a mera diversidade de pontos de vista, de opções e, finalmente, de informações, que costuma receber o nome de pluri ou multiculturalidade, resolverá a ausência de um significado unitário para tudo o que existe. A pessoa humana é, em sua própria essência, aquele lugar da natureza para onde converge a variedade dos significados em uma única vocação de sentido. As pessoas não se assustam com a diversidade. O que de fato as assusta é não conseguir reunir o conjunto de todos estes significados da realidade em uma compreensão unitária que lhes permita exercer sua liberdade com discernimento e responsabilidade. A pessoa sempre procura a verdade de seu ser, visto que é esta verdade que ilumina a realidade de tal modo que possa se desenvolver nela com liberdade e alegria, com gozo e esperança.
2.1.1 Situação Sócio-cultural
43. Portanto, a realidade social que em sua dinâmica atual descrevemos com a palavra globalização, antes que qualquer outra dimensão, impacta a nossa cultura e o modo como nos inserimos e nos apropriamos dela. A variedade e a riqueza das culturas latino-americanas, desde aquelas mais originárias até aquelas que com a passagem da história e a mestiçagem de seus povos foram se sedimentando nas nações, nas famílias, nos grupos sociais, nas instituições educativas e na convivência cívica, constitui um dado bastante evidente para nós o qual valorizamos como uma singular riqueza. O que hoje em dia está em jogo não é a diversidade que os meios de comunicação são capazes de individualizar e registrar. O que ninguém esquece é, pelo contrário, a possibilidade de que esta diversidade possa convergir em uma síntese que, envolvendo a variedade de sentidos, seja capaz de projetá-la em um destino histórico comum. Nisto reside o valor incomparável do ânimo mariano de nossa religiosidade popular que, sob distintos nomes, tem sido capaz de fundir as histórias latino-americanas diversas em uma história compartilhada: aquela que conduz a Cristo, Senhor da vida, em quem se realiza a mais alta dignidade de nossa vocação humana.
44. Vivemos uma mudança de época cujo nível mais profundo é o cultural. Dissolve-se a concepção integral do ser humano, sua relação com o mundo e com Deus; “aqui está precisamente o grande erro das tendências dominantes do último século... Que excluem Deus de seu horizonte, falsificam o conceito da realidade e só podem terminar em caminhos equivocados e com receitas destrutivas24. Surge hoje, com grande força, uma sobrevalorização da subjetividade individual. Independentemente de sua forma, a liberdade e a dignidade da pessoa são reconhecidas. O individualismo enfraquece os vínculos comunitários e propõe uma radical transformação do tempo e do espaço, dando um papel primordial à imaginação. Os fenômenos sociais, econômicos e tecnológicos estão na base da profunda vivência do tempo, ao que se concebe fixado no próprio presente, trazendo concepções de inconsistência e instabilidade. Deixa-se de lado a preocupação pelo bem comum para dar lugar à realização imediata dos desejos dos indivíduos, à criação de novos e, muitas vezes, arbitrários direitos individuais, aos problemas da sexualidade, da família, das enfermidades e da morte.
45. A ciência e a tecnologia quando colocadas exclusivamente a serviço do mercado, com os critérios únicos da eficácia, da rentabilidade e do funcional, criam uma nova visão da realidade. A utilização dos meios de comunicação de massa está introduzindo na sociedade um sentido estético, uma visão a respeito da felicidade, uma percepção da realidade e até uma linguagem, que se querem impor como uma autêntica cultura. Deste modo, termina-se por destruir o que de verdadeiramente humano há nos processos de construção cultural, que nascem do intercâmbio pessoal e coletivo.
46. Verifica-se, em nível intenso, uma espécie de nova colonização cultural pela imposição de culturas artificiais, desprezando as culturas locais e com tendência a impor uma cultura homogeneizada em todos os setores. Esta cultura se caracteriza pela auto-referência do indivíduo, que conduz à indiferença pelo outro, de quem não necessita e por quem não se sente responsável. Prefere-se viver o dia a dia, sem programas a longo prazo nem apegos pessoais, familiares e comunitários. As relações humanas estão sendo consideradas objetos de consumo, conduzindo a relações afetivas sem compromisso responsável e definitivo.
47. Também se verifica uma tendência para a afirmação exasperada de direitos individuais e subjetivos. Esta busca é pragmática e imediatista, sem preocupação com critérios éticos. A afirmação dos direitos individuais e subjetivos, sem um esforço semelhante para garantir os direitos sociais culturais e solidários, resulta em prejuízo da dignidade de todos, especialmente daqueles que são mais pobres e vulneráveis.
48. Nesta hora da América Latina e do Caribe, é imperativo tomar consciência da situação precária que afeta a dignidade de muitas mulheres. Algumas desde crianças e adolescentes, são submetidas a múltiplas formas de violência dentro e fora de casa: tráfico, violação, escravização e assédio sexual; desigualdades na esfera do trabalho, da política e da economia; exploração publicitária por parte de muitos meios de comunicação social que as tratam como objeto de lucro.
49. As mudanças culturais modificaram os papéis tradicionais de homens e mulheres, que procuram desenvolver novas atitudes e estilos de suas respectivas identidades, potencializando todas suas dimensões humanas na convivência cotidiana, na família e na sociedade, às vezes por vias equivocadas.
50. A avidez do mercado descontrola o desejo de crianças, jovens e adultos. A publicidade conduz ilusoriamente a mundos distantes e maravilhosos, onde todo desejo pode ser satisfeito pelos produtos que têm um caráter eficaz, efêmero e até messiânico. Legitima-se que os desejos se tornem felicidade. Como só se necessita do imediato, a felicidade se pretende alcançar através do bem-estar econômico e da satisfação hedonista.
51. As novas gerações são as mais afetadas por esta cultura do consumo em suas aspirações pessoais profundas. Crescem na lógica do individualismo pragmático e narcisista, que desperta nelas mundos imaginários especiais de liberdade e igualdade. Afirmam o presente porque o passado perdeu relevância diante de tantas exclusões sociais, políticas e econômicas. Para eles o futuro é incerto. Assim mesmo, participam da lógica da vida como espetáculo, considerando o corpo como ponto de referência de sua realidade presente. Têm um novo vício pelas sensações e crescem em uma grande maioria sem referência aos valores e instâncias religiosas. Em meio à realidade de mudança cultural emergem novos sujeitos, com novos estilos de vida, maneiras de pensar, de sentir, de perceber e com novas formas de se relacionar. São produtores e atores da nova cultura.
52. Entre os aspectos positivos desta mudança cultural aparece o valor fundamental da pessoa, de sua consciência e experiência, a busca do sentido da vida e da transcendência. Para dar respostas à busca mais profunda do significado da vida, o fracasso das ideologias dominantes, permitiu que a simplicidade e o reconhecimento do fraco e do pequeno na existência surgissem como valor, com uma grande capacidade e potencial que não podem ser desvalorizados. Esta ênfase na apreciação da pessoa abre novos horizontes, onde a tradição cristã adquire um renovado valor, sobretudo quando a pessoa se reconhece no Verbo encarnado que nasce em um estábulo e assume uma condição humilde, de pobre.
53. A necessidade de construir o próprio destino e o desejo de encontrar razões para a existência podem colocar em movimento o desejo de se encontrar com outros e compartilhar o vivido, como uma maneira de se dar uma resposta. Trata-se de uma afirmação da liberdade pessoal e, por isso, da necessidade de se questionar em profundidade as próprias convicções e opções.
54. Porém, junto com a ênfase na responsabilidade individual em meio a sociedades que promovem o acesso aos bens através dos meios. Paradoxalmente, nega-se às grandes maiorias o acesso aos mesmos bens, que constituem elementos básicos e essenciais para viverem como pessoas.
55. A ênfase na experiência pessoal e no vivencial nos leva a considerar o testemunho como um componente chave na vivência da fé. Os fatos são valorizados quando são significativos para a pessoa. Na linguagem testemunhal podemos encontrar um ponto de contato com as pessoas que compõem a sociedade e delas entre si.
56. Por outro lado, a riqueza e a diversidade cultural dos povos da América Latina e do Caribe parecem evidentes. Existem em nossa região diversas culturas indígenas, afro americanas, mestiças, camponesas, urbanas e suburbanas. As culturas indígenas se caracterizam sobretudo por seu apego profundo à terra, pela vida comunitária e por uma certa procura de Deus Os afro-americanos se caracterizam, entre outros elementos, pela expressividade corporal, o enraizamento familiar e o sentido de Deus. A cultura camponesa está referida ao ciclo agrário. A cultura mestiça, que é a mais extensa entre muitos povos da região, tem buscado em meios às contradições sintetizar ao longo da história estas múltiplas fontes culturais originárias, facilitando o diálogo das respectivas cosmovisões e permitindo sua convergência em uma história compartilhada. A esta complexidade cultural haveria que se acrescentar também a de tantos imigrantes europeus que se estabeleceram nos países de nossa região.
57. Estas culturas coexistem em condições desiguais com a chamada cultura globalizada. Elas exigem reconhecimento e oferecem valores que constituem uma resposta aos anti-valores da cultura e que se impõem através dos meios de comunicação de massas: comunitarismo, valorização da família, abertura à transcendência e solidariedade. Estas culturas são dinâmicas e estão em interação permanente entre si e com as diferentes propostas culturais.
58. A cultura urbana é híbrida, dinâmica e mutável, pois amálgama múltiplas formas, valores e estilos de vida e afeta todas as coletividades. A cultura suburbana é fruto de grandes migrações de população, em sua maioria pobre, que se estabeleceu ao redor das cidades nos cinturões de miséria. Nestas culturas os problemas de identidade e pertença, relação, espaço vital e lar são cada vez mais complexos.
59. Existem também comunidades de migrantes que deixaram as culturas e tradições trazidas de suas terras de origem, sejam cristãs ou de outras religiões. Por sua vez, esta diversidade inclui comunidades que foram se formando com a chegada de diferentes denominações cristãs e outros grupos religiosos. Assim, assumir a diversidade cultural, que é um imperativo do momento, envolve superar os discursos que pretendem uniformizar a cultura, com enfoques baseados em modelos únicos.
2.1.2 Situação econômica
60. O Papa , em seu Discurso Inaugural, vê a globalização como um fenômeno “de relações de nível planetário”, considerando-o “uma conquista da família humana”, porque favorece o acesso a novas tecnologias, mercados e finanças. As altas taxas de crescimento de nossa economia regional e, particularmente, seu desenvolvimento urbano, não seriam possíveis sem a abertura ao comércio internacional, sem acesso às tecnologias de última geração, sem a participação de nossos cientistas e técnicos no desenvolvimento internacional do conhecimento e sem o alto investimento registrado nos meio eletrônicos de comunicação. Tudo isso leva também consigo o surgimento de uma classe média tecnologicamente letrada. Ao mesmo tempo a globalização se manifesta como a profunda aspiração do gênero humano à unidade. Não obstante estes avanços, o Papa também assinala que a globalização “comporta o risco dos grandes monopólios e de converter o lucro em valor supremo”. Por isso, Bento XVI enfatiza que “como em todos os campos da atividade humana, a globalização deve se reger também pela ética, colocando tudo a serviço da pessoa humana, criada a imagem e semelhança de Deus”25.
61. A globalização é um fenômeno complexo que possui diversas dimensões (econômicas, políticas, culturais, comunicacionais, etc). Para sua justa valorização, é necessária uma compreensão analítica e diferenciada que permita detectar tanto seus aspectos positivos quanto os negativos. Lamentavelmente, a face mais difundida e de êxito da globalização é sua dimensão econômica, que se sobrepõe e condiciona as outras dimensões da vida humana. Na globalização, a dinâmica do mercado absolutiza com facilidade a eficácia e a produtividade como valores reguladores de todas as relações humanas. Este peculiar caráter faz da globalização um processo promotor de iniqüidades e injustiças múltiplas. A globalização, tal como está configurada atualmente, não é capaz de interpretar e reagir em função de valores objetivos que se encontram além do mercado e que constituem o mais importante da vida humana: a verdade, a justiça, o amor, e muito especialmente, a dignidade e os direitos de todos, inclusive daqueles que vivem à margem do próprio mercado.
62. Conduzida por uma tendência que privilegia o lucro e estimula a competitividade, a globalização segue uma dinâmica de concentração de poder e de riqueza em mãos de poucos. Concentração não só dos recursos físicos e monetários, mas sobretudo de informação e dos recursos humanos, o que produz a exclusão de todos aqueles não suficientemente capacitados e informados, aumentando as desigualdades que marcam tristemente nosso continente e que mantêm na pobreza uma multidão de pessoas. O que existe hoje é a pobreza de conhecimento e do uso e acesso a novas tecnologias. Por isso é necessário que os empresários assumam sua responsabilidade de criar mais fontes de trabalho e de investir na superação desta nova pobreza.
63. Porém, está claro que o predomínio desta tendência não têm eliminado a possibilidade de se formar pequenas e médias empresas. Elas se associam ao dinamismo exportador da economia, prestam-lhe serviços colaterais ou aproveitam nichos específicos do mercado interno. No entanto, sua fragilidade econômica e financeira e a pequena escala em que se desenvolvem, tornam-nas extremamente vulneráveis frente às taxas de juros, ao risco do câmbio, aos custos previsionais e a variação nos preços de seus insumos. A debilidade destas empresas se associa à precariedade do emprego que estão em condições de oferecer. Sem uma política de proteção específica dos estados a elas, corre-se o risco de que as economias dos grandes consórcios termine por se impor como a única forma determinante do dinamismo econômico.
64. Por isso, frente a esta forma de globalização, sentimos um forte chamado para promover uma globalização diferente, que esteja marcada pela solidariedade, pela justiça e pelo respeito aos direitos humanos, fazendo da América Latina e do Caribe não só o Continente da esperança, mas também o Continente do amor, como propôs SS. Bento XVI no Discurso Inaugural desta Conferência.
65. Isto deveria nos levar a contemplar os rostos daqueles que sofrem. Entre eles estão as comunidades indígenas e afro-americanas que, em muitas ocasiões, não são tratadas com dignidade e igualdade de condições; muitas mulheres são excluídas, em razão de seu sexo, raça ou situação sócio-econômica; jovens que recebem uma educação de baixa qualidade e não têm oportunidades de progredir em seus estudos nem de entrar no mercado de trabalho para se desenvolver e constituir uma família; muitos pobres, desempregados, migrantes, deslocados, agricultores sem terra, aqueles que procuram sobreviver na economia informal; meninos e meninas submetidos à prostituição infantil ligada muitas vezes ao turismo sexual; também as crianças vítimas do aborto. Milhões de pessoas e famílias vivem na miséria e inclusive passam fome. Preocupam-nos também os dependentes das drogas, as pessoas com limitações físicas, os portadores e vítimas de enfermidades graves como a malária, a tuberculose e HIV – AIDS, que sofrem a solidão e se vêem excluídos da convivência familiar e social. Não nos esqueçamos também dos seqüestrados e aqueles que são vítimas da violência, do terrorismo, de conflitos armados e da insegurança na cidade. Também os anciãos que, além de se sentirem excluídos do sistema produtivo, vêem-se muitas vezes recusados por sua família como pessoas incômodas e inúteis. Sentimos as dores, enfim, da situação desumana em que vive a grande maioria dos presos, que também necessitam de nossa presença solidária e de nossa ajuda fraterna. Uma globalização sem solidariedade afeta negativamente os setores mais pobres. Já não se trata simplesmente do fenômeno da exploração e opressão, mas de algo novo: da exclusão social. Com ela o pertencimento à sociedade na qual se vive fica afetado, pois já não se está abaixo, na periferia ou sem poder, mas se está de fora. Os excluídos não são somente “explorados”, mas “supérfluos” e “descartáveis”.
66. As instituições financeiras e as empresas transnacionais se fortalecem ao ponto de subordinar as economias locais, sobretudo, debilitando os Estados, que aparecem cada vez mais impotentes para levar adiante projetos de desenvolvimento a serviço de suas populações, especialmente quando se trata de investimentos de longo prazo e sem retorno imediato. As indústrias extrativistas internacionais e a agroindústria, muitas vezes, não respeitam os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais das populações locais e não assumem suas responsabilidades. Com muita freqüência, se subordina a preservação da natureza ao desenvolvimento econômico, com danos á biodiversidade, com o esgotamento das reservas de água e de outros recursos naturais, com a contaminação do ar e a mudança climática. As possibilidades e eventuais problemas da produção de agrocombustíveis devem ser estudadas, de tal maneira que prevaleça o valor da pessoa humana e de suas necessidades de sobrevivência. A América Latina possui os aqüíferos mais abundantes do planeta, junto com grandes extensões de território selvagem, que são pulmões da humanidade. Assim se dão gratuitamente ao mundo serviços ambientais que não são reconhecidos economicamente. A região se vê afetada pelo aquecimento da terra e a mudança climática provocada principalmente pelo estilo de vida não sustentável dos países industrializados.
67. A globalização tem celebrado freqüentes Tratados de Livre Comércio entre países com economias assimétricas, que nem sempre beneficiam os países mais pobres, ao mesmo tempo, pressiona-se os países da região com exigências desmedidas em matéria de propriedade intelectual, a tal ponto que se permitem direitos de patente sobre a vida em todas as suas formas. Além disso, a utilização de organismos geneticamente manipulados tem mostrado o que nem sempre a globalização contribui para o combate contra a fome, nem para o desenvolvimento rural sustentável.
68. Ainda que se tenha progredido muitíssimo no controle da inflação e na estabilidade macro-econômica dos países da região, muitos governos se encontram severamente limitados para o financiamento de seu orçamento público pelos elevados serviços da dívida externa26 e interna e que, por outro lado, não contam com sistemas tributários verdadeiramente eficientes, progressivos e eqüitativos.
69. A atual concentração de renda e riqueza acontece principalmente pelos mecanismos do sistema financeiro. A liberdade concedida aos investimentos financeiros favorecem o capital especulativo, que não tem incentivos para fazer investimentos produtivos de longo prazo, mas busca o lucro imediato nos negócios com títulos públicos, moedas e derivados. No entanto, segundo a Doutrina Social da Igreja, “o objeto da economia é a formação da riqueza e seu incremento progressivo, em termos não só quantitativos, mas qualitativos: tudo é moralmente correto se está orientado para o desenvolvimento global e solidário do homem e da sociedade na qual vive e trabalha. O desenvolvimento, na verdade, não pode se reduzir a um mero processo de acumulação de bens e de serviços. Ao contrário, a pura acumulação, ainda que para o bem comum, não é uma condição suficiente para a realização de uma autêntica felicidade humana”27. A empresa é chamada a prestar uma contribuição maior na sociedade, assumindo a chamada responsabilidade social-empresarial, a partir dessa perspectiva.
70. É também alarmante o nível de corrupção nas economias envolvendo tanto o setor público quanto o setor privado, ao que se soma uma notável falta de transparência e prestação de contas à cidadania. Em muitas ocasiões, a corrupção está vinculada ao flagelo do narcotráfico ou do narconegócio ,e por outro lado, vem destruindo o tecido social e econômico em regiões inteiras.
71. A população economicamente ativa da região é afetada pelo subemprego (42%) e o desemprego (9%), e quase a metade está empregada no trabalho informal. O trabalho formal, por sua vez, vê-se submetido à precariedade das condições de emprego e à pressão constante da subcontratação, que traz consigo salários mais baixos e falta de proteção na área da segurança social, não permitindo a muitos o desenvolvimento de uma vida digna. Neste contexto, os sindicatos perdem a possibilidade de defender os direitos dos trabalhadores. Por outro lado, é possível destacar fenômenos positivos e criativos para enfrentar esta situação por parte dos afetados, que vêm estimulando diversas experiências, como por exemplo, micro-finanças, economia local e solidária e comércio justo.
72. Os homens do campo, em sua maioria, sofrem por causa da pobreza, agravada por não terem acesso à terra própria. No entanto, existem grandes latifúndios em mãos de poucos. Em alguns países, esta situação tem levado a população a exigir uma Reforma Agrária, estando atentos aos males que podem lhes ocasionar os Tratados de Livre Comércio, a manipulação de drogas e outros fatores.
73. Um dos fenômenos mais importantes em nossos países é o processo de mobilidade humana, em sua dupla expressão de migração e de itinerância em que milhões de pessoas migram ou se vêem forçadas a migrar dentro e fora de seus respectivos países. As causas são diversas e estão relacionadas com a situação econômica, a violência em suas diversas formas, a pobreza que afeta as pessoas e a falta de oportunidades para a pesquisa e o desenvolvimento profissional. Em muitos casos as conseqüência são de enorme gravidade em nível pessoal, familiar e cultural. A perda do capital humano de milhões de pessoas, de profissionais qualificados, de pesquisadores e amplos setores d agricultura, vai nos empobrecendo cada vez mais. A exploração do trabalho chega, em alguns casos, a gerar condições de verdadeira escravidão. Acontece também um vergonhoso tráfico de pessoas, que inclui a prostituição, inclusive de menores. Merece especial menção a situação dos refugiados, que questiona a capacidade de acolhida da sociedade e das igrejas. Por outro lado, no entanto, a remessa de divisas dos emigrados a seus países de origem tem se tornado uma importante e, às vezes, insubstituível fonte de recursos para diversos países da região, ajudando o bem-estar e à mobilidade social ascendente daqueles que conseguem participar com êxito neste processo.
2.1.3 Dimensão sócio-política
74. Constatamos um certo progresso democrático que se demonstra em diversos processos eleitorais. No entanto, vemos com preocupação o acelerado avanço de diversas formas de regressão autoritária por via democrática que, em certas ocasiões, resultam em regimes de corte neo-populista. Isto indica que não basta uma democracia puramente formal, fundada em procedimentos eleitorais honestos, mas que é necessário uma democracia participativa e baseada na promoção e respeito dos direitos humanos. Uma democracia sem valores como os mencionados torna-se facilmente uma ditadura e termina traindo o próprio povo.
75. Com a presença da Sociedade Civil assumindo uma atitude mais protagonista e a irrupção de novos atores sociais como são os indígenas, os afro-americanos, as mulheres, os profissionais, uma extensa classe média e os setores marginalizados organizados, está se fortalecendo a democracia participativa e estão se criando maiores espaços de participação política. Estes grupos estão tomando consciência do poder que têm em suas mãos e da possibilidade de gerarem mudanças importantes para a conquista de políticas públicas mais justas, que revertam sua situação de exclusão. Neste plano, percebe-se também uma crescente influência de organismos das nações unidas e de Organizações Não-Governamentais de caráter internacional que nem sempre ajustam suas recomendações a critérios éticos. Não faltam também atuações que radicalizam as posições, fomentam a conflitividade e a polarização extremas e colocam esse potencial a serviço de interesses alheios aos seus, o que, ao final, pode frustrar e reverter negativamente suas esperanças.
76. Depois de uma época de debilidade dos Estados devido a aplicação de ajustes estruturais na economia, por recomendação de organismos financeiros internacionais, olha-se, atualmente, com bons olhos um esforço por parte dos Estados em definir e aplicar políticas públicas nos campos da saúde, educação, segurança alimentar, previdência social, acesso à terra e à moradia, promoção eficaz da economia para a criação de empregos e leis que favorecem as organizações solidárias. Tudo isto mostra que não pode existir democracia verdadeira e estável sem justiça social, sem divisão real de poderes e sem a vigência do Estado de direito28.
77. Cabe assinalar como um grande fator negativo, o recrudescimento da corrupção na sociedade e no Estado em boa parte da região, envolvendo os poderes legislativos e executivo em todos os seus níveis, alcançando também o sistema judicial que, muitas vezes, inclina seu juízo a favor dos poderosos e gera impunidade, o que coloca em sério risco a credibilidade das instituições públicas e aumenta a desconfiança do povo, fenômeno que se une a um profundo desprezo pela legalidade. Em amplos setores da população e especialmente entre os jovens cresce o desencanto pela política e particularmente pela democracia, pois as promessas de uma vida melhor e mais justa não se cumpriram ou se cumpriram só pela metade. Neste sentido, esquece-se de que a democracia e a participação política são fruto da formação que se faz realidade somente quando os cidadãos são conscientes de seus direitos fundamentais e de seus deveres correspondentes.
78. A vida social em convivência harmônica e pacífica está se deteriorando gravemente em muitos países da América Latina e do Caribe pelo crescimento da violência, que se manifesta em roubos, assaltos, seqüestros, e o que é mais grave, em assassinatos que a cada dia destroem mais vidas humanas e enchem de dor as famílias e a sociedade inteira. A violência se reveste de várias formas e tem diversos agentes: o crime organizado e o narco-tráfico, grupos paramilitares, violência comum sobretudo na periferia das grandes cidades, violência de grupos de jovens e crescente violência intra-familiar. Suas causas são múltiplas: a idolatria elo dinheiro, o avanço de uma ideologia individualista e utilitarista, a falta de respeito pela dignidade de cada pessoa, a deterioração do tecido social, a corrupção inclusive nas forças de ordem e a falta de políticas públicas de equidade social.
79. Alguns parlamentos ou assembléias legislativas aprovam leis injustas contra os direitos humanos e a vontade popular, precisamente por não estar perto de seus representados, nem saber escutar e dialogar com os cidadãos, mas também por ignorância, por falta de acompanhamento e porque muitos cidadãos abdicam de seu dever de participar na vida pública.
80. Em alguns países tem aumentado a repressão, a violência dos direitos humanos, inclusive o direito à liberdade religiosa, a liberdade de expressão e a liberdade de ensino, assim como o desprezo à objeção de consciência.
81. Ainda que alguns países tenham conseguido acordos de paz superando dessa forma conflitos antigos, em outros, continua a luta armada com todas as suas seqüelas (mortes violentas, violações dos Direitos Humanos, ameaças, crianças na guerra, seqüestros, etc.), sem que se possa observar soluções em curto prazo. A influência do narco-negócio nestes grupos dificulta ainda mais as possíveis soluções.
82. Na América Latina e no Caribe vê-se com bons olhos uma crescente vontade de integração regional com acordos multilaterais, envolvendo um número crescente de países que geram suas próprias regras no campo do comércio, dos serviços e das patentes. À origem comum unem-se a cultura, a língua e a religião que podem contribuir para que a integração não seja só de mercados, mas de instituições civis e de pessoas. Também é positiva a globalização da justiça, no campo dos direitos humanos e dos crimes contra a humanidade que permitirá a todos viver progressivamente sob normas iguais chamadas a proteger sua dignidade, sua integridade e sua vida.
2.1.4 Biodiversidade, ecologia, Amazônia e Antártida
83. A América Latina é o Continente que possui uma das maiores biodiversidades do planeta e uma rica sócio diversidade representada por seus povos e culturas. Estes possuem um grande acervo de conhecimentos tradicionais sobre a utilização dos recursos naturais, assim como sobre o valor medicinal de plantas e outros organismos vivos, muitos dos quais formam a base de sua economia. Tais conhecimentos são atualmente objeto de apropriação intelectual ilícita, sendo patenteados por indústrias farmacêuticas e de biogenética, gerando vulnerabilidade dos agricultores e suas famílias que dependem desses recursos para sua sobrevivência.
84. Nas decisões sobre as riquezas da biodiversidade e da natureza as populações tradicionais têm sido praticamente excluídas. A natureza foi e continua sendo agredida. A terra foi depredada. As águas estão sendo tratadas como se fossem uma mercadoria negociável pelas empresas, além de haver sido transformadas em um bem disputado pelas grandes potências. Um exemplo muito importante nesta situação é a Amazônia29.
85. Em seu discurso aos jovens, no Estádio do Pacaembu, em São Paulo, o Papa Bento XVI chamou a atenção sobre a “devastação ambiental da Amazônia e as ameaças à dignidade humana de seus povos”30 e pediu aos jovens “um maior compromisso nos mais diversos espaços de ação31”.
86. A crescente agressão ao meio-ambiente pode servir de pretexto para propostas de internacionalização da Amazônia, que só servem aos interesses econômicos das corporações internacionais. A sociedade panamazõnica é pluriétnica, pluricultural e plurireligiosa. Nela, está-se intensificando, cada vez mais, a disputa pela ocupação do território. As populações tradicionais da região querem que seus territórios sejam reconhecidos e legalizados.
87. Além disso, constatamos o retrocesso das geleiras em todo o mundo: o degelo do Ártico cujo impacto já está se vendo na flora e fauna desse ecossistema; também o aquecimento global se faz sentir no estrondoso crepitar dos blocos de gelo ártico que reduzem a cobertura glacial do Continente e que regula o clima do mundo. Profeticamente, há 20 anos, desde a fronteira das Américas, João Paulo II assinalou: “Desde o Cone Sul do Continente Americano e frente aos ilimitados espaços da Antártida, lanço um chamado a todos os responsáveis de nosso planeta para proteger e conservar a natureza criada por Deus: não permitamos que nosso mundo seja uma terra cada vez mais degradada e degradante”32.
2.1.5 Presença dos povos indígenas e afro-americanos na Igreja
88. Os indígenas constituem a população mais antiga do Continente. Estão na raiz primeira da identidade latino-americana e caribenha. Os afro-americanos constituem outra raiz que foi arrancada da África e trazida para cá como gente escravizada. A terceira raiz é a população pobre que migrou da Europa a partir do século XVI, em busca de melhores condições de vida e o grande fluxo de imigrantes de todo o mundo a partir de meados do século XIX. De todos estes grupos e de suas correspondentes culturas se formou a mestiçagem que é a base social e cultural de nossos povos latino-americanos e caribenhos, como já o reconheceu a III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano celebrada em Puebla, México33.
89. Os indígenas e afro-americanos são, sobretudo, “outros” diferentes que exigem respeito e reconhecimento. A sociedade tende a menosprezá-los, desconhecendo o porquê de suas diferenças. Sua situação social está marcada pela exclusão e pela pobreza. A Igreja acompanha os indígenas e afro-americanos nas lutas por seus legítimos direitos.
90. Hoje, os povos indígenas e afros estão ameaçados em sua existência física, cultural e espiritual; em seus modos de vida; em suas identidades; em sua diversidade; em seus territórios e projetos. Algumas comunidades indígenas se encontram fora de suas terras porque elas foram invadidas e degradadas, ou não tem terras suficientes para desenvolver suas culturas. Sofrem graves ataques a sua identidade e sobrevivência, pois a globalização econômica e cultural coloca em perigo sua própria existência como povo diferentes. Sua progressiva transformação cultural provoca o rápido desaparecimento de algumas línguas e culturas. A migração, forçada pela pobreza, está influindo profundamente na mudança de seus costumes, de relacionamentos e inclusive de religião.
91. Os indígenas e afro-americanos emergem agora na sociedade e na Igreja. Este é um “kairós” para aprofundar o encontro da Igreja com estes setores humanos que reivindicam o reconhecimento pleno de seus direitos individuais e coletivos, serem levados em consideração na catolicidade com sua cosmovisão, seus valores e suas identidades particulares, para viver um novo Pentecostes eclesial.
92. Já, em Santo Domingo, os pastores reconheciam que “os povos indígenas cultivam valores humanos de grande significado”34; valores que “a Igreja defende... diante da força dominadora das estruturas de pecado manifestas na sociedade moderna”35; “são possuidores de inumeráveis riquezas culturais, que estão na base de nossa identidade atual”36; e, a partir da perspectiva da fé, “estes valores e convicções são fruto de ‘sementes do Verbo’, que já estavam presentes e operavam em seus antepassados”37.
93. Entre eles podemos assinalar: “abertura à ação de Deus pelos frutos da terra, o caráter sagrado da vida humana, a valorização da família, o sentido de solidariedade e a co-responsabilidade no trabalho comum, a importância do cultual, a crença em uma vida ultra terrena”38. Atualmente, o povo tem enriquecido amplamente estes valores através da evangelização e os tem desenvolvido em múltiplas formas de autêntica religiosidade popular.
94. Como Igreja que assume a causa dos pobres, estimulamos a participação dos indígenas e afro-americanos na vida eclesial Vemos com esperança o processo de inculturação discernido à luz do magistério. É prioritário fazer traduções católicas da Bíblia e dos textos litúrgicos nos idiomas desses povos. Necessita-se, igualmente, promover mais as vocações e os ministérios ordenados procedentes destas culturas.
95. Nosso serviço pastoral à vida plena dos povos indígenas exige que anunciemos a Jesus Cristo e a Boa Nova do Reino de Deus, denunciemos as situações de pecado, as estruturas de morte, a violência e as injustiças internas e externas e fomentemos o diálogo intercultural, interreligioso e ecumênico. Jesus Cristo é a plenitude da revelação para todos os povos e o centro fundamental de referência para discernir os valores e as deficiências de todas as culturas, incluindo as indígenas. Por isso, o maior tesouro que podemos oferecer a eles é que cheguem ao encontro com Jesus Cristo ressuscitado, nosso Salvador. Os indígenas que já receberam o Evangelho, como discípulos e missionários de Jesus Cristo, são chamados a viver com imensa alegria sua realidade cristã, a explicar a razão de sua fé em meio a suas comunidades e a colaborar ativamente para que nenhum povo indígena da América Latina renegue sua fé cristã, mas ao contrário, sintam que em Cristo encontram o sentido pleno de sua existência.
96. A história dos afro-americanos tem sido atravessada por uma exclusão social, econômica, política e, sobretudo, racial, onde a identidade étnica é fator de subordinação social. Atualmente, são discriminados na inserção do trabalho, na qualidade e conteúdo da formação escolar, nas relações cotidianas e, além disso, existe um processo de ocultamento sistemático de seus valores, história, cultura e expressões religiosas. Permanece, em alguns casos, uma mentalidade e um certo olhar de menor respeito em relação aos indígenas e afro-americanos. Desse modo, descolonizar as mentes, o conhecimento, recuperar a memória histórica, fortalecer os espaços e relacionamentos inter-culturais, são condições para a afirmação da plena cidadania destes povos.
97. A realidade latino-americana conta com comunidades afro-americanas muito vivas que participam ativa e criativamente na construção deste continente. Os movimentos pela recuperação das identidades, dos direitos dos cidadãos e contra o racismo e os grupos alternativos de economias solidárias, fazem das mulheres e homens negros sujeitos construtores de sua história e de uma nova história que se vai desenhando na atualidade latino-americana e caribenha. Esta nova realidade se baseia em relações inter-culturais onde a diversidade não significa ameaça, não justifica hierarquias de um poder sobre outros, mas sim diálogo a partir de visões culturais diferentes de celebração, de inter-relacionamento e de reavivamento da esperança.
2.2 Situação de nossa Igreja nesta hora histórica de desafios
98. A Igreja católica na América Latina e no Caribe, apesar das deficiências e ambigüidades de alguns de seus membros, tem dado testemunho de Cristo, anunciado seu Evangelho e oferecido seu serviço de caridade principalmente aos mais pobres, no esforço por promover sua dignidade e também no empenho de promoção humana nos campos da saúde, da economia solidária, da educação, do trabalho, do acesso à terra, da cultura, da habitação e assistência, entre outros. Com sua voz, unida à de outras instituições nacionais e mundiais, tem ajudado a dar orientações prudentes e a promover a justiça, os direitos humanos e a reconciliação dos povos. Isto tem permitido que a Igreja seja reconhecida socialmente em muitas ocasiões como uma instância de confiança e credibilidade. Seu empenho a favor dos mais pobres e sua luta pela dignidade de cada ser humano tem ocasionado, em muitos casos, a perseguição e, inclusive, a morte de alguns de seus membros, os quais consideramos testemunhas da fé. Queremos recordar o testemunho valente de nossos santos e santas, e aqueles que, inclusive sem haver sido canonizados, tem vivido com radicalidade o evangelho e oferecido sua vida por Cristo, pela Igreja e por seu povo.
99. Os esforços pastorais orientados para o encontro com Jesus Cristo vivo deram e continuam dando frutos. Entre outros, destacamos os seguintes:
a) Devido a animação bíblica da pastoral, aumenta o conhecimento da Palavra de Deus e do amor por ela. Graças à assimilação do Magistério da Igreja e a uma melhor formação de generosos catequistas, a renovação da Catequese tem produzido fecundos resultados em todo o Continente, chegando inclusive a países da América do Norte, Europa e Ásia, para onde muitos latino-americanos e caribenhos têm emigrado.
b) A renovação litúrgica acentuou a dimensão celebrativa e festiva da fé cristã centrada no mistério pascal de Cristo Salvador, em particular na Eucaristia. Crescem as manifestações da religiosidade popular, especialmente a piedade eucarística e a devoção mariana. Esforços têm sido realizados para inculturar a liturgia nos povos indígenas e afro-americanos. Estão sendo superados os riscos de reduzir a Igreja a sujeito político, com um melhor discernimento dos impactos sedutores das ideologias. Têm-se fortalecido a responsabilidade e a vigilância com relação às verdades da Fé, ganhando em profundidade e serenidade de comunhão.
c) Nosso povo tem grande estima pelos sacerdotes. Reconhece a santidade de muitos deles, como também seu testemunho de vida, seu trabalho missionário e sua criatividade pastoral, particularmente daqueles que estão em lugares distantes ou em contextos de maior dificuldade. Muitas de nossas Igrejas contam com uma pastoral sacerdotal com experiências concretas de vida em comum e de uma retribuição do clero mais justa. Em algumas Igrejas desenvolve-se o diaconato permanente. Contam também com ministérios confiados aos leigos e outros serviços pastorais, como delegados da Palavra, animadores de assembléia e de pequenas comunidades, entre elas, as comunidades eclesiais de base, os movimentos eclesiais e um grande número de pastorais específicas. Faz-se um grande esforço pela formação em nossos Seminários, nas casas de formação para a vida consagrada e nas escolas para o diaconato permanente. É significativo o testemunho da vida consagrada, sua participação na ação pastoral e sua presença em situações de pobreza, de risco e de fronteira. A Igreja estimula com esperança o incremento de vocações para a vida contemplativa masculina e feminina.
d) Ressalta a abnegada entrega de tantos missionários e missionárias que, até o dia de hoje, tem desenvolvido uma valiosa obra evangelizadora e de promoção humana em todos os nossos povos, com multiplicidade de obras e serviços. Desse modo é reconhecido o trabalho de numerosos sacerdotes, consagradas e consagrados, leigos e leigas que, a partir do nosso Continente, participam da missão ad gentes.
e) Crescem os esforços de renovação pastoral nas paróquias, favorecendo um encontro com Cristo vivo mediante diversos métodos de nova evangelização que se transformam em comunidade de comunidades evangelizadas e missionárias. Contata-se em alguns lugares um florescimento de comunidades eclesiais de base, segundo o critério das Conferências Gerais anteriores, em comunhão com os Bispos e fiéis ao Magistério da Igreja39. Valoriza-se a presença e o crescimento dos movimentos eclesiais e novas comunidades que difundem sua riqueza carismática, educativa e evangelizadora. Tem-se tomado consciência da importância da pastoral Familiar, da Infância e Juvenil.
f) A Doutrina Social da Igreja constitui uma riqueza sem preço que tem animado o testemunho e a ação solidária dos leigos e leigas, aqueles que se interessam cada vez mais por sua formação teológica como verdadeiros missionários da caridade, e se esforçam por transformar de maneira efetiva o mundo segundo Cristo. Hoje, inumeráveis iniciativas laicas no âmbito social, cultural, econômico e político, deixam-se inspirar pelos princípios permanentes, pelos critérios de juízo e pelas diretrizes de ação provenientes da Doutrina Social da Igreja. Valoriza-se o desenvolvimento que tem tido a Pastoral Social, como também a ação da Cáritas em seus vários níveis e a riqueza do voluntariado, nos mais diversos apostolados com incidência social. Tem-se desenvolvido a pastoral da comunicação social e mais do que nunca a Igreja tem contado com mais meios de comunicação para a evangelização da cultura, neutralizando em parte outros grupos religiosos que ganham constantemente adeptos, usando com perspicácia o rádio e a televisão. Temos rádios, televisão, cinema, jornais, internet, páginas de web e a RIIAL que nos enchem de esperança.
g) A diversificação da organização eclesial, com a criação de muitas comunidades, novas jurisdições e organismos pastorais, permitiu que muitas Igrejas locais avançassem na estruturação de uma Pastoral Orgânica, para servir melhor às necessidades dos fiéis. Não com a mesma intensidade, em todas as Igrejas, tem-se desenvolvido o diálogo ecumênico. Também o diálogo interreligioso, quando segue as normas do Magistério, pode enriquecer os participantes em diversos encontros40. Em outros lugares, tem-se criado escolas de ecumenismo ou de colaboração ecumênica em assuntos sociais e outras iniciativas. Manifesta-se, como reação ao materialismo, uma busca de espiritualidade, de oração e de mística que expressa fome e sede de Deus. Por outro lado, a valorização da ética é um sinal dos tempos que indica a necessidade de superar o hedonismo, a corrupção e o vazio dos valores. Alegra-nos, além disso, o profundo sentimento de solidariedade que caracteriza nossos povos e a prática de compartilhar e de ajuda mútua.
100. Apesar dos aspectos positivos que nos alegram na esperança, observamos sombras, entre as quais mencionamos as seguintes:
a) Para a Igreja Católica, a América Latina e o Caribe são de grande importância, por seu dinamismo eclesial, por sua criatividade e porque 43% de todos os seus fiéis vivem nesses locais; no entanto, observamos que o crescimento percentual da Igreja não segue o mesmo ritmo que o crescimento populacional. Na média, o aumento do clero, e sobretudo, das religiosas, distancia-se cada vez mais do crescimento populacional em nossa região41.
b) Lamentamos, seja algumas tentativas de voltar a um certo tipo de eclesiologia e espiritualidade contrárias à renovação do Concílio Vaticano II42, seja algumas leituras e aplicações reducionistas da renovação conciliar; lamentamos a ausência de uma autêntica obediência e do exercício evangélico da autoridade, das infidelidades à doutrina, à moral e à comunhão, nossas débeis vivências da opção preferencial pelos pobres, não poucas recaídas secularizantes na vida consagrada influenciada por uma antropologia meramente sociológica e não evangélica. Tal como manifestou o Santo Padre no Discurso Inaugural de nossa Conferência: “percebe-se um certo enfraquecimento da vida cristã no conjunto da sociedade e do próprio pertencimento à Igreja Católica”43.
c) Constatamos o escasso acompanhamento dado aos fiéis leigos em suas tarefas de serviço à sociedade, particularmente quando assumem responsabilidades nas diversas estruturas de ordem temporal. Percebemos uma evangelização com pouco ardor e sem novos métodos e expressões, uma ênfase no ritualismo sem o conveniente caminho de formação, descuidando de outras tarefas pastorais. De igual forma, preocupa-nos uma espiritualidade individualista. Verificamos, deste modo, uma mentalidade relativista no ético e no religioso, a falta de aplicação criativa do rico patrimônio que contêm a Doutrina Social da Igreja e, em certas ocasiões, uma compreensão limitada do caráter secular que constitui a identidade própria e específica dos fiéis leigos.
d) Na evangelização, na catequese e, em geral, na pastoral, persistem também linguagens pouco significativas para a cultura atual e em particular, para os jovens. Muitas vezes as linguagens utilizadas parecem não levar em consideração a mutação dos códigos existencialmente relevantes nas sociedades influenciadas pela pós-modernidade e marcadas por um amplo pluralismo social e cultural. As mudanças culturais dificultam a transmissão da Fé por parte da família e da sociedade. Frente a isso, não se vê uma presença importante da Igreja na geração de cultura, de modo especial no mundo universitário e nos meios de comunicação.
e) O número insuficiente de sacerdotes e sua não eqüitativa distribuição impossibilitam que muitíssimas comunidades possam participar regularmente na celebração da Eucaristia. Recordando que a Eucaristia faz à Igreja, preocupa-nos a situação de milhares destas comunidades privadas da Eucaristia dominical por longos períodos de tempo. A isto se acrescenta a relativa escassez de vocações ao ministério e à vida consagrada. Falta espírito missionário em membros do clero, inclusive em sua formação. Muitos católicos vivem e morrem sem assistência da Igreja, à qual pertencem pelo batismo. Enfrentam-se dificuldades para assumir a sustentação econômica das estruturas pastorais. Falta solidariedade na comunhão de bens no interior das igrejas locais e entre elas. Em muitas das nossas Igrejas locais não se assume suficientemente a pastoral penitenciária, nem a pastoral de menores infratores e em situações de risco. É insuficiente o acompanhamento pastoral para os migrantes e itinerantes. Alguns movimentos eclesiais nem sempre se integram adequadamente na pastoral paroquial e diocesana; por sua vez, algumas estruturas eclesiais não são suficientemente abertas para acolhê-los.
f) Nas últimas décadas vemos com preocupação, por um lado, que numerosas pessoas perdem o sentido transcendental de suas vidas e abandonam as práticas religiosas e, por outro lado, que um número significativo de católicos estão abandonando a Igreja para entrar em outros grupos religiosos. Ainda que este seja um problema real em todos os países latino-americanos e caribenhos, não existe homogeneidade no que se refere a suas dimensões e sua diversidade.
g) Dentro do novo pluralismo religioso em nosso continente, não se tem diferenciado suficientemente os cristãos que pertencem a outras igrejas ou comunidades eclesiais, tanto por sua doutrina como por suas atitudes, dos que fazem parte da grande diversidade de grupos cristãos (inclusive pseudo-cristãos) que se tem instalado entre nós. Isto porque não é adequado englobar a todos em uma só categoria de análise. Muitas vezes não é fácil o diálogo ecumênico com grupos cristãos que atacam a Igreja Católica com insistência.
h) Reconhecemos que, ocasionalmente, alguns católicos tem se afastado do Evangelho, que requer um estilo de vida mais simples, austero e solidário, mais fiel à verdade e à caridade, como também nos tem faltado valentia, persistência e docilidade à graça de prosseguir, fiel à Igreja de sempre, a renovação iniciada pelo Concílio Vaticano II, impulsionada pelas Conferências Gerais anteriores, e para assegurar o rosto latino-americano e caribenho de nossa Igreja. Reconhecemo-nos como comunidade de pobres pecadores, mendicantes da misericórdia de Deus, congregada, reconciliada, unida e enviada pela força da Ressurreição de seu Filho e a graça de conversão do Espírito Santo.
SEGUNDA PARTEA VIDA DE JESUS CRSITO NOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS
CAPÍTULO 3A ALEGRIA DE SERMOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS PARA ANUNCIAR O EVANGELHO DE JESUS CRISTO
101. Neste momento, com incertezas no coração, perguntamo-nos com Tomé: “Como vamos saber o caminho?” (Jo 14,5). Jesus nos responde com uma proposta provocadora: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6). Ele é o verdadeiro caminho para o Pai., quem tanto amou ao mundo que deu a seu Filho único, para que todo aquele que nele creia tenha a vida eterna (cf. Jo 3,16). Esta é a vida eterna: “que te conheçam a ti o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo teu enviado” (Jo 17,3). A fé em Jesus como o Filho do Pai é a porta de entrada para a Vida. Como discípulos de Jesus, confessamos nossa fé com as palavras de Pedro: “Tuas palavras dão vida eterna” (Jo 6,68); “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16).
102. Jesus é o Filho de Deus, a Palavra feito carne (cf. Jo 1,14), verdadeiro Deus e verdadeiro homem, prova do amor de Deus aos homens. Sua vida é uma entrega radical de si mesmo a favor de todas as pessoas, consumada definitivamente em sua morte e ressurreição. Por ser o Cordeiro de Deus, Ele é o Salvador. Sua paixão, morte e ressurreição possibilita a superação do pecado e a vida nova para toda a humanidade. N’Ele, o Pai se faz presente, porque quem conhece o Filho conhece o Pai (cf. Jo 14,7).
103. Como discípulos de Jesus reconhecemos que Ele é o primeiro e maior evangelizador enviado por Deus (cf. Lc 4,44) e, ao mesmo tempo, o Evangelho de Deus (cf. Rm 1,3). Cremos e anunciamos “a boa nova de Jesus, Messias, Filho de Deus” (Mc 1,1). Como filhos obedientes á voz do Pai queremos escutar a Jesus (cf. Lc 9,35) porque Ele é o único Mestre (cf. Mt 23,8). Como seus discípulos sabemos que suas palavras são Espírito e Vida (cf. Jo 6,63.68). Com a alegria da fé somos missionários para proclamar o Evangelho de Jesus Cristo e, n’Ele, a boa nova da dignidade humana, da vida, da família, do trabalho, da ciência e da solidariedade com a criação.
3.1. A boa nova da dignidade humana
104. Bendizemos a Deus pela dignidade da pessoa humana, criada a sua imagem e semelhança. Ele nos criou livres e nos fez sujeitos de direitos e deveres em meios à criação. Agradecemos-lhe por nos associar ao aperfeiçoamento do mundo, dando-nos inteligência e capacidade para amar; pela dignidade, que recebemos também com a tarefa e o dever de proteger, cultivar e promover. Bendizemos a Deus pelo dom da fé que nos permite viver em aliança com Ele até o momento de compartilhar a vida eterna. Bendizemos a Deus por nos fazer suas filhas e filhos em Cristo, por nos haver redimido com o preço de seu sangue e pelo relacionamento permanente que estabelece conosco, que é fonte de nossa dignidade absoluta, inegociável e inviolável. Se o pecado deteriorou a imagem de Deus no homem e feriu sua condição, a boa nova, que é Cristo, o redimiu e o restabeleceu na graça (cf. Rm 5,12-21).
105. Louvamos a Deus pelos homens e mulheres da América Latina e do Caribe que, movidos por sua fé, tem trabalhado incansavelmente na defesa da dignidade da pessoa humana, especialmente dos pobres e marginalizados. Em seu testemunho, levado até a entrega total, resplandece a dignidade do ser humano.
3.2 A boa nova da vida
106. Louvamos a Deus pelo dom maravilhoso da vida e por aqueles que a honram e a dignificam ao colocá-la a serviço dos demais; pelo espírito alegre de nossos povos que amam a música, a dança, a poesia, a arte, o esporte e cultivam uma firme esperança em meio a problemas e lutas. Louvamos a Deus porque, sendo nós pecadores, Ele nos mostrou seu amor reconciliando-nos consigo pela morte de seu Filho na cruz. Louvamos a Deus porque Ele continua derramando seu amor em nós pelo Espírito Santo e nos alimentando com a Eucaristia, pão da vida (cf. Jo 6,35). A Encíclica “Evangelho da Vida”, de João Paulo II, ilumina o grande valor da vida humana a qual devemos cuidar e pela qual continuamente devemos louvar a Deus.
107. Bendizemos ao Pai pelo dom de seu Filho Jesus Cristo “rosto humano de Deus e rosto divino do homem”44. “Na realidade, tão só o mistério do Verbo encarnado explica verdadeiramente o mistério do homem. Cristo, na própria revelação do mistério do Pai e de seu amor, manifesta plenamente o homem ao próprio homem e descobre sua altíssima vocação”45.
108. Bendizemos ao Pai porque, mesmo entre dificuldades e incertezas, todo homem aberto sinceramente à verdade e ao bem comum, pode chegar a descobrir na lei natural escrita em seu coração (cf. Rm 2,14-150, o valor sagrado da vida humana desde seu início até seu fim natural e afirmar o direito de cada ser humano de ver respeitado totalmente este seu bem primário. “A convivência humana e a própria comunidade política”46 se fundamenta no reconhecimento desse direito.
109. Diante de uma vida sem sentido, Jesus nos revela a vida íntima de Deus em seu mistério mais elevado, a comunhão trinitária. É tal o amor de Deus, que faz do homem, peregrino neste mundo, sua morada: “Viremos a ele e viveremos nele” (Jo 14,23). Diante do desespero de um mundo sem Deus, que só vê na morte o final definitivo da existência, Jesus nos oferece a ressurreição e a vida eterna na qual deus será tudo em todos (cf. 1 Cor 15,28). Diante da idolatria dos bens terrenos, Jesus apresenta a vida em Deus como valor supremo: “de que vale alguém ganhar o mundo e perder a sua vida?” (Mc 8,36)47.
110. Diante do subjetivismo hedonista, Jesus propõe entregar a vida para ganha-la, porque “quem aprecia sua vida terrena, perdê-la-á” (Jo 12,25). É próprio do discípulo de Jesus gastar sua vida como sal da terra e luz do mundo. Diante do individualismo, Jesus convoca a viver e caminhar juntos. A vida cristã só se aprofunda e se desenvolve na comunhão fraterna. Jesus nos disse “um é seu mestre e todos vocês são irmãos” (Mt 23,8). Diante da despersonalização, Jesus ajuda a construir identidades integradas.
111. A própria vocação, a própria liberdade e a própria originalidade são dons de Deus para a plenitude e a serviço do mundo.
112. Diante da exclusão, Jesus defende os direitos dos fracos e a vida digna de todo ser humano. De seu Mestre, o discípulo tem aprendido a lutar contra toda forma de desprezo da vida e de exploração da pessoa humana48. Só o Senhor é autor e dono da vida. O ser humano, sua imagem vivente, é sempre sagrado, desde a sua concepção até a sua morte natural; em todas as circunstâncias e condições de sua vida. Diante das estruturas de morte, Jesus faz presente a vida plena. “Eu vim para dar vida aos homens e para que a tenham em abundância” (Jo 10,10). Por isso, cura os enfermos, expulsa os demônios e compromete os discípulos na promoção da dignidade humana e de relacionamentos sociais fundados na justiça.
113. Diante da natureza ameaçada, Jesus que conhecia o cuidado do Pai pelas criaturas que Ele alimenta e embeleza (cf Lc 12,28), convoca-nos a cuidar da terra para que ela ofereça abrigo e sustento a todos os homens (cf. Gn 1,29; 2,15).
3.3 A boa nova da família
114. Proclamamos com alegria o valor da família na América Latina e no Caribe. O Papa Bento XVI afirma que a família, “patrimônio da humanidade, constitui um dos tesouros mais importantes dos povos latino-americanos e caribenhos. Ela tem sido e é escola da fé, palestra de valores humanos e cívicos, lar em que a vida humana nasce e se acolhe generosa e responsavelmente... A família é insubstituível para a serenidade pessoal e para a educação de seus filhos”49.
115. Agradecemos a Cristo que nos revela que “Deus é amor e vive em si mesmo um mistério pessoal de amor”50 e, optando por viver em família em meio a nós, eleva-a à dignidade de ‘Igreja Doméstica’.
116. Bendizemos a Deus por haver criado o ser humano, homem e mulher, ainda que hoje se queira confundir esta verdade: “Criou Deus os seres humanos a sua imagem; a imagem de Deus os criou, homem e mulher os criou” (Gn 1,27). Pertence à natureza humana que o homem e a mulher busquem um no outro sua reciprocidade e complementaridade51.
117.O fato de sermos amados por Deus enche-nos de alegria. O amor humano encontra sua plenitude quando participa do amor divino, do amor de Jesus que se entrega solidariamente por nós em seu amor pleno até o fim (cf. Jo 13,1; 15,9). O amor conjugal é a doação recíproca entre um homem e uma mulher, os esposos: é fiel e exclusivo até a morte e fecundo, aberto á vida e á educação dos filhos, assemelhando-se ao amor fecundo da Santíssima Trindade52. O amor conjugal é assumido no Sacramento do Matrimônio para significar a união de Cristo com sua Igreja. Por isso, na graça de Jesus Cristo ele encontra sua purificação, alimento e plenitude ( Ef 5,23-33).
118. No seio de uma família, a pessoa descobre os motivos e o caminho para pertencer á família de Deus. Dela, recebemos a vida que é a primeira experiência do amor e da fé. O grande tesouro da educação dos filhos na fé consiste na experiência de uma vida familiar que recebe a fé, conserva-a, celebra-a, transmite-a e dá testemunha dela. Os pais devem tomar nova consciência de sua alegre e irrenunciável responsabilidade na formação integral de seus filhos.
119. Deus ama nossas famílias, apesar de tantas feridas e divisões. A presença invocada de Cristo através da oração em família nos ajuda a superar os problemas, a curar as feridas e abre caminhos de esperança. Muitos vazios de lar podem ser atenuados através de serviços prestados pela comunidade eclesial, família de famílias.
3.4 A boa nova da atividade humana
3.4.1 O trabalho
120. Louvamos a Deus porque na beleza da criação, que é obra de suas mãos, resplandece o sentido do trabalho como participação de sua tarefa criadora e como serviço aos irmãos e irmãs. Jesus, o carpinteiro (cf. Mc 6,3), dignificou o trabalho e o trabalhador e recorda que o trabalho não é um mero apêndice da vida, mas que “constitui uma dimensão fundamental da existência do homem na terra”53, pela qual o homem e a mulher se realizam como seres humanos54. O trabalho garante a dignidade e a liberdade do homem, e é provavelmente “a chave essencial de toda ‘a questão social’”55.
121. Damos graças a Deus porque sua palavra nos ensina que, apesar do cansaço que muitas vezes acompanha o trabalho, o cristão sabe que este, unido à oração, serve não só para o progresso terreno, mas também para a santificação pessoal e a construção do Reino de Deus56. O desemprego, a injusta remuneração pelo trabalho e o viver sem querer trabalhar são contrários ao desígnio de Deus. O discípulo e o missionário, respondendo a este desígnio, promovem a dignidade do trabalhador e do trabalho, o justo reconhecimento de seus direitos e de seus deveres, desenvolvem a cultura do trabalho e denunciam toda injustiça. A guarda do domingo, como dia de descanso, da família e do culto ao Senhor, garante o equilíbrio entre trabalho e repouso. Cabe à comunidade criar estruturas que ofereçam um trabalho ás pessoas deficientes, segundo suas possibilidades57.
122. Louvamos a Deus pelos talentos, pelo estudo e pela decisão de homens e mulheres para promover iniciativas e projetos geradores de trabalho e produção, que elevam a condição humana e o bem-estar da sociedade. A atividade empresarial é boa e necessária quando respeita a dignidade do trabalhador, o cuidado do meio-ambiente e se ordena o bem comum. Perverte-se ao visar só o lucro, atenta contra os direitos dos trabalhadores e a justiça.
3.4.2 A ciência e a tecnologia
123. Louvamos a Deus por aqueles que cultivam as ciências e a tecnologia oferecendo uma imensa quantidade de bens e valores culturais que tem contribuído, entre outras coisas, para prolongar a expectativa de vida e sua qualidade. No entanto, a ciência e a tecnologia não têm as respostas às grandes interrogações da vida humana. A resposta última às questões fundamentais do homem só pode vir de uma razão e ética integrais, iluminadas pela revelação de Deus. Quando a verdade, o bem e a beleza se separam; quando a pessoa humana e suas exigências fundamentais não constituem o critério ético, a ciência e a tecnologia voltam-se contra o homem que as criou.
124. Hoje em dia as fronteiras traçadas entre as ciências se desvanecem. Com este modo de compreender o diálogo, sugere-se a idéia de que nenhum conhecimento é completamente autônomo. Esta situação abre um terreno de oportunidades à teologia para interagir com as ciências sociais.
3.5. A boa nova do destino universal dos bens e da ecologia
125. Junto com os povos originários da América, louvamos ao Senhor que criou o universo como espaço para a vida e a convivência de todos seus filhos e filhas e no-los deixou como sinal de sua bondade e de sua beleza. A criação também é manifestação do amor providente de Deus; foi-nos entregue para que cuidemos dela e a transformemos em fonte de vida digna para todos. Ainda que hoje se tenha generalizado uma maior valorização da natureza, percebemos claramente de quantas maneiras o homem ameaça e inclusive destrói seu ‘habitat’. “Nossa irmã a mãe terra” é nossa casa comum58 e o lugar da aliança de Deus com os seres humanos e com toda a criação. Desatender as mútuas relações e o equilíbrio que o próprio Deus estabeleceu entre as realidades criadas, é uma ofensa ao Criador, um atentado contra a biodiversidade e, definitivamente, contra a vida. O discípulo missionário, a quem Deus encarregou a criação, deve contemplá-la, cuidar dela e utiliza-la, respeitando sempre a ordem dada pelo Criador.
126. A melhor forma de respeitar a natureza é promover uma ecologia humana aberta à transcendência que, respeitando a pessoa e a família, os ambientes e as cidades, segue a indicação paulina de recapitular as coisas em Cristo e de louvar com Ele ao Pai (cf. 1 Cor 3,21-23). O Senhor entregou o mundo para todos, para os das gerações presentes e futuras. O destino universal dos bens exige a solidariedade com a geração presente e as futuras. Visto que os recursos são cada vez mais limitados, seu uso deve estar regulado segundo um princípio de justiça distributiva, respeitando o desenvolvimento sustentável.
3.6 O Continente da esperança e do amor
127. Como discípulos e missionários agradecemos a Deus porque a maioria dos latino-americanos e caribenhos estão batizados. A providência de Deus nos confiou o precioso patrimônio de pertencer á Igreja pelo dom do batismo que nos tem feito membros do Corpo de Cristo, povo de Deus peregrino em terra americanas há mais de quinhentos anos. Alenta nossa esperança a multidão de nossas crianças, os ideais de nossos jovens e o heroísmo de muitas de nossas famílias que, apesar das crescentes dificuldades, seguem sendo fiéis ao amor.. Agradecemos a Deus pela religiosidade de nossos povos que resplandece na devoção ao Cristo sofredor e a sua Mãe bendita, na veneração aos Santos com suas festas patronais, no amor ao Papa e aos demais pastores, no amor à Igreja universal como grande família de Deus que nunca pode nem deve deixar seus próprios filhos sós ou na miséria59.
128. Reconhecemos o dom da vitalidade da Igreja que peregrina na América Latina e no Caribe, sua opção pelos pobres, suas paróquias, suas comunidades, suas associações, seus movimentos eclesiais, novas comunidades e seus múltiplos serviços sociais e educativos. Louvamos ao Senhor por ter feito deste continente um espaço de comunhão e comunicação de povos e culturas indígenas. Também agradecemos o protagonismo que vão adquirindo setores que foram deslocados: mulheres, indígenas, afro-americanas, os homens do campo e habitantes de áreas marginais das grandes cidades. Toda a vida de nossos povos fundada em Cristo e redimida por Ele pode olhar para o futuro com esperança e alegria, acolhendo o chamado do Papa Bento XVI: “Só da Eucaristia brotará a civilização do amor que transformará a América latina e o Caribe para que, além de ser o Continente da esperança, seja também o Continente do amor!”60.
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