CAPÍTULO 4A VOCAÇÃO DOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS À SANTIDADE
4.1 Chamados ao seguimento de Jesus Cristo
129. Por assim dizer, Deus Pai sai de si, para nos chamar a participar de sua vida e de sua glória. Mediante Israel, povo que fez seu, Deus nos revela seu projeto de vida. Cada vez que Israel procurou e necessitou de seu Deus, sobretudo nas desgraças nacionais, teve uma singular experiência de comunhão com Ele, que o fazia partícipe de sua verdade, sua vida e sua santidade. Por isso, não demorou em testemunhar que seu Deus – diferentemente dos ídolos – é o “Deus vivo” (Dt 5,26) que o liberta dos opressores (cf. Ex 3,7-10), que perdoa incansavelmente (cf. Ec 34,6; Eclo 2,11) e que restitui a salvação perdida quando o povo, envolvido “nas redes da morte” (Sl 116,3), dirige-se a Ele suplicante (Cf. Is 38,16). Deste Deus – que é seu Pai – Jesus afirmará que “não é um Deus de mortos, mas de vivos” (Mc 12,27).
130. Nestes últimos tempos, Ele nos tem falado por meio de Jesus seu Filho (Hb 1,1ss), com quem chega a plenitude dos tempos (cf. Gl 4,4). Deus, que é Santo e nos ama, nos chama por meio de Jesus a ser santos (cf. Ef 1,4-5).
131. O chamado que Jesus, o Mestre faz, implica numa grande novidade. Na antiguidade, os mestres convidavam seus discípulos a se vincular com algo transcendente e os mestres da Lei propunham a adesão à Lei de Moisés. Jesus convida a nos encontrar com Ele e a que nos vinculemos estreitamente a Ele porque é a fonte da vida (cf. Jo 15,1-5) e só Ele tem palavra de vida eterna (cf. Jo 6,68). Na convivência cotidiana com Jesus e na confrontação com os seguidores de outros mestres, os discípulos logo descobrem duas coisas originais no relacionamento com Jesus. Por um lado, não foram eles que escolheram seu mestre foi Cristo quem os escolheu. E por outro lado, eles não foram convocados para algo (purificar-se, aprender a Lei...), mas para Alguém, escolhidos para se vincular intimamente a sua pessoa (cf. Mc 1,17; 2,14). Jesus os escolheu para “que estivessem com Ele e para enviá-los a pregar” (Mc 3,14), para que o seguissem com a finalidade de “ser d’Ele” e fazer parte “dos seus” e participar de sua missão. O discípulo experimenta que a vinculação íntima com Jesus no grupo dos seus é participação da Vida saída das entranhas do Pai, é se formar para assumir seu estilo de vida e suas motivações (cf. Lc 6,40b), viver seu destino e assumir sua missão de fazer novas todas as coisas.
132. Com a parábola da Videira e dos ramos (cf. Jo 15,1-8), Jesus revela o tipo de vínculo que Ele oferece e que espera dos seus. Não quer um vínculo como “servos” (cf. Jo 8,33-36), porque “o servo não conhece o que faz seu senhor” (jo 15,15). O servo não tem entrada na casa de seu amo, muito menos em sua vida. Jesus quer que seu discípulo se vincule a Ele como “amigo” e como “irmão”. O “amigo” ingressa em sua Vida, fazendo-a própria. O amigo escuta a Jesus, conhece ao Pai e faz fluir sua Vida (Jesus Cristo) na própria existência (cf. Jo 15,14), marcando o relacionamento com todos (cf. Jo 15,12). O “irmão” de Jesus (cf. Jo 20,17) participa da vida do Ressuscitado, Filho do Pai celestial, porque Jesus e seu discípulo compartilham a mesma vida que procede do Pai: Jesus, por natureza (cf. Jo 5,26; 10,30) e o discípulo, por participação (cf. Jo 10,10). A conseqüência imediata deste tipo de vínculo é a condição de irmãos que os membros de sua comunidade adquirem.
133. Jesus faz dos discípulos seus familiares, porque compartilha com eles a mesma vida que procede do Pai e lhes pede, como discípulos, uma união íntima com Ele, obediência à Palavra do Pai, para produzir frutos de amor em abundância. Dessa forma o testemunho de São João no prólogo de seu Evangelho:”A todos aqueles que crêem em seu nome, deu-lhes a capacidade para serem filhos de Deus”, e são filhos de Deus que “não nascem por via de geração humana, nem porque o homem o deseje, mas sim nascem de Deus” (Jo 1,12-13).
134. Como discípulos e missionários, somos chamados a intensificar nossa resposta de fé e a anunciar que Cristo redimiu todos os pecados e males da humanidade, “no aspecto mais paradóxico de seu mistério, a hora da cruz. O grito de Jesus: “Deus, meu, Deus, meu, por que me abandonaste?” (Mc 15,34) não revela a angústia de um desesperado, mas a oração do Filho que oferece a sua vida ao Pai no amor para a salvação de todos”61.
135. A resposta a seu chamado exige entrar na dinâmica do Bom samaritano (cf. Lc 10,29-37), que nos dá o imperativo de nos fazer próximos, especialmente com o que sofre, e gerar uma sociedade sem excluídos, seguindo a prática de Jesus que come com publicanos e pecadores (cf. Lc 5,29-32), que acolhe os pequenos e as crianças (cf. Mc 10,13-16), que cura os leprosos (cf. Mc 1,40-45), que perdoa e liberta a mulher pecadora (cf. Lc 7,36-49; Jo 8,1-11), que fala com a Samaritana (cf. Jo 4,1-26).
4.2 Parecidos com o Mestre
136. A admiração pela pessoa de Jesus, seu chamado e seu olhar de amor despertam uma resposta consciente e livre desde o mais íntimo do coração do discípulo, uma adesão de toda sua pessoa ao saber que Cristo o chama por seu nome (cf. Jo 10,3). É um “sim” que compromete radicalmente a liberdade do discípulo a se entregar a Jesus, Caminho, Verdade e Vida (cf. Jo 14,6). É uma resposta de amor a quem o amou primeiro “até o extremo” (cf. Jo 13,1). A resposta do discípulo amadurece neste amor de Jesus: “Te seguirei por onde quer que vás” (Lc 9,57).
137. O Espírito Santo, com o qual o Pai nos presenteia, identifica-nos com Jesus-Caminho, abrindo-nos a seu mistério de salvação para que sejamos seus filhos e irmãos uns dos outros; identifica-nos com Jesus-Verdade, ensinando-nos a renunciar a nossas mentiras e ambições pessoais, e nos identifica com Jesus-Vida, permitindo-nos abraçar seu plano de amor e nos entregar para que outros “tenham vida n’Ele”.
138. Para ficar parecido verdadeiramente com o Mestre é necessário assumir a centralidade do Mandamento do amor, que Ele quis chamar seu e novo: “Amem-se uns aos outros, como eu os amei” (Jo 15,12). Este amor, com a medida de Jesus, com total dom de si, além de ser o diferencial de cada cristão, não pode deixar de ser a característica de sua Igreja, comunidade discípula de Cristo, cujo testemunho de caridade fraterna será o primeiro e principal anúncio, “todos reconhecerão que sois meus discípulos” (Jo 13,35).
139. No seguimento de Jesus Cristo, aprendemos e praticamos as bem-aventuranças do Reino, o estilo de vida do próprio Jesus: seu amor e obediência filial ao Pai, sua compaixão entranhável frente à dor humana, sua proximidade aos pobres e aos pequenos, sua fidelidade à missão encomendada, seu amor serviçal até a doação de sua vida. Hoje, contemplamos a Jesus Cristo tal como os Evangelhos nos transmitiram para conhecer o que Ele fez e para discernir o que nós devemos fazer nas atuais circunstâncias.
140. Identificar-se com Jesus Cristo é também compartilhar seu destino: “Onde eu estiver, aí estará também o meu servo” (Jo 12,26). O cristão vive o mesmo destino do Senhor, inclusive até a cruz: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, carregue a sua cruz e me siga” (Mc 8,34). Estimula-nos o testemunho de tantos missionários e mártires de ontem e de hoje em nossos povos que tem chegado a compartilhar a cruz de Cristo até a entrega de sua vida.
141. A Virgem Maria é a imagem esplêndida da conformação ao projeto trinitário que se cumpre em Cristo. Desde a sua Concepção Imaculada até sua Assunção, recorda-nos que a beleza do ser humano está toda no vínculo do amor com a Trindade, e que a plenitude de nossa liberdade está na resposta positiva que lhe damos.
142. Na América Latina e no Caribe inumeráveis cristãos procuram buscar a semelhança do Senhor ao encontra-lo na escuta orante da Palavra, no receber seu perdão no Sacramento da Reconciliação, e sua vida na celebração da Eucaristia e dos demais sacramentos, na entrega solidária aos irmãos mais necessitados e na vida de muitas comunidades que reconhecem com alegria o Senhor em meio a eles.
4.3 Enviado a anunciar o Evangelho do Reino da vida
143. Jesus Cristo, verdadeiro homem e verdadeiro Deus, com palavras e ações e com sua morte e ressurreição inaugura no meio de nós o Reino de vida do Pai,que alcançará sua plenitude num lugar onde não haverá mais “morte, nem luto, nem pranto, nem dor, porque tudo o que é antigo desaparecerá” (Ap 21,4). Durante sua vida e com sua morte na cruz, Jesus permanece fiel a seu Pai e a sua vontade (cf. Lc 22,42). Durante seu ministério, os discípulos não foram capazes de compreender que o sentido de sua vida selava o sentido de sua morte. Muito menos podiam compreender que, segundo o desígnio do Pai, a morte do Filho era fonte de vida fecunda para todos (cf. Jo 12,23-24). O mistério pascal de Jesus é o ato de obediência e amor ao Pai e de entrega por todos seus irmãos. Com esse ato, o Messias doa plenamente aquela vida que oferecia nos caminhos e aldeias da Palestina. Por seu sacrifício voluntário, o Cordeiro de Deus oferece sua vida nas mãos do Pai (cf. Lc 23,46), que o faz salvação “para nós” (1 Cor 1,30). Pelo mistério pascal, o Pai sela a nova aliança e gera um novo povo que tem por fundamento seu amor gratuito de Pai que salva.
144. Ao chamar aos seus para que o sigam, Jesus lhes dá uma missão muito precisa: anunciar o evangelho do Reino a todas as nações (cf. Mt 28,19; Lc 24,46-48). Por isto, todo discípulo é missionário, pois Jesus o faz partícipe de sua missão ao mesmo tempo que o vincula a Ele como amigo e irmão. Desta maneira, como Ele é testemunha do mistério do Pai, assim os discípulos são testemunhas da morte e ressurreição do Senhor até que Ele retorne. Cumprir esta missão não é uma tarefa opcional, mas parte integrante da identidade cristã, porque é a difusão testemunhal da própria vocação.
145. Quando cresce no cristão a consciência de se pertencer a Cristo, em razão da gratuidade e alegria que produz, cresce também o ímpeto de comunicar a todos o dom desse encontro. A missão não se limita a um programa ou projeto, mas em compartilhar a experiência do acontecimento do encontro com Cristo, testemunha-lo e anuncia-lo de pessoa a pessoa, de comunidade a comunidade e da Igreja a todos os confins do mundo (cf. At 1,8).
146. Bento XVI nos recorda que: “o discípulo, fundamentado assim na rocha da Palavra de Deus, sente-se motivado a levar a Boa Nova da salvação a seus irmãos. Discipulado e missão são como os dois lados de uma mesma moeda: quando o discípulo está enamorado de Cristo, não pode deixar de anunciar ao mundo que só Ele salva (cf. At 4,12). Na realidade, o discípulo sabe que sem Cristo não há luz, não há esperança, não há amor, não há futuro”62. Esta é a tarefa essencial da evangelização, que inclui a opção preferencial pelos pobres, a promoção humana integral e a autêntica libertação cristã.
147. Jesus saiu ao encontro de pessoas em situações muito diferentes: homens e mulheres, pobres e ricos, judeus e estrangeiros, justos e pecadores... convidando-os a segui-los. Hoje, segue convidando a encontrar n’Ele o amor do Pai. Por isto mesmo, o discípulo missionário há de ser um homem ou uma mulher que torna visível o amor misericordioso do Pai, especialmente aos pobres e pecadores.
148. Ao participar desta missão, o discípulo caminha para a santidade. Vive-la na missão o conduz ao coração do mundo. Por isso, a santidade não é uma fuga para o intimismo ou para o individualismo religioso, muito menos um abandono da realidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da América Latina e do mundo e, muito menos, uma fuga da realidade para um mundo exclusivamente espiritual63.
4.4 Animados pelo Espírito Santo
149. No começo de sua vida pública e depois de seu batismo, Jesus foi conduzido pelo Espírito Santo ao deserto para se preparar para a sua missão (cf. Mc 1,12-13) e, através da oração e do jejum, discerniu a vontade do Pai e venceu as tentações de seguir outros caminhos. Esse mesmo Espírito acompanhou Jesus durante toda sua vida (cf. At 10,38). Uma vez ressuscitado, Ele comunicou seu Espírito vivificado aos seus (cf. At 2,33).
150. A partir de Pentecostes, a Igreja experimenta de imediato fecundas irrupções do Espírito, vitalidade divina que se expressa em diversos dons e carismas (cf. 1 Cor 12,1-11) e variados ofícios que edificam a Igreja e servem à evangelização (cf. 1 Cor 12,28-29). Através destes dons, a Igreja propaga o ministério salvífico do Senhor até que Ele de novo se manifeste no final dos tempos (cf. 1 Cor 1,6-7). O Espírito na Igreja forja missionários decididos e valentes como Pedro (cf. At 4,13) e Paulo (cf. At 13,9),, indica os lugares que devem ser evangelizados e escolhe aqueles que devem faze-lo (cf. At 13,2).
151. A Igreja, enquanto marcada e selada “com Espírito Santo e fogo” (Mt 3,110, continua a obra do Messias, abrindo para o crente as portas da salvação (cf. 1 Cor 6,110. Paulo afirma isso desse modo: “Vocês são uma carta de cristo redigida por nosso ministério e escrita não com tinta, mas com o Espírito do deus vivo” (2 Cor 3,3). O mesmo e único Espírito guia e fortalece a Igreja no anúncio da Palavra, na celebração da fé e no serviço da caridade até que o Corpo de Cristo alcance a estatura de sua Caneca (cf. Ef 4,15-16). Deste modo, pela eficaz presença de seu Espírito, até a parusia Deus assegura sua proposta de vida para homens e mulheres de todos os tempos e lugares, impulsionando a transformação da história e seus dinamismos. Portanto, o Senhor continua derramando hoje sua Vida pelo trabalho da Igreja que, com “a força do Espírito Santo enviado desde o céu” (1 Pe 1,12), continua a missão que Jesus Cristo recebeu de seu pai (cf. Jo 20,21).
152. Jesus nos transmitiu as palavras de seu Pai e é o Espírito que recorda à Igreja as palavras de Cristo (cf. Jo 14,26). Desde o princípio, os discípulos haviam sido formados por Jesus no Espírito Santo (cf. At 1,2) que é, na Igreja, o Mestre interior que conduz ao conhecimento da verdade total formando discípulos e missionários. Esta é a razão pela qual os seguidores de Jesus devem se deixar guiar constantemente pelo Espírito (cf. Gl 5,25), e tornar a paixão pelo Pai e pelo Reino sua própria paixão: anunciar a Boa Nova aos pobres, curar os enfermos, consolar os tristes, libertar os cativos e anunciar a todos o ano da graça do Senhor (cf. Lc 4,18-19).
153. Esta realidade se faz presente em nossa vida por obra do Espírito Santo que também, através dos sacramentos, nos ilumina e vivifica. Em virtude do Batismo e da Confirmação somos chamados a ser discípulos missionários de Jesus Cristo e entramos na comunhão trinitária na Igreja. Esta tem seu ponto alto na Eucaristia, que é princípio e projeto de missão do cristianismo. “Assim, pois, a Santíssima Eucaristia conduz a iniciação cristã a sua plenitude e é como o centro e fim de toda a vida sacramental”64.
CAPÍTULO 5A COMUNHÃO DOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS NA IGREJA
5.1 Chamados a viver em comunhão
154. Jesus, no início de seu ministério, escolhe os doze para viver em comunhão com Ele (cf. Mc 3,14). Para favorecer a comunhão e avaliar a missão, Jesus lhes pede: “Venham só a um lugar desabitado, para descansar um pouco” (Mc 6,31-320. Em outras oportunidades Jesus se encontrará com eles para lhes explicar o mistério do Reino (cf. Mc 4,11.33-34). Jesus age da mesma maneira com o grupo dos setenta e dos discípulos (cf. Lc 10,17-20). Ao que parece, o encontro a sós indica que Jesus quer lhes falar ao coração (cf. Os 2,14). Também hoje o encontro dos discípulos com Jesus na intimidade é indispensável para alimentar a vida comunitária e a atividade missionária.
155. Os discípulos de Jesus são chamados a viver em comunhão com o Pai (1 Jo 1,30 e com seu Filho morto e ressuscitado, na “comunhão no Espírito Santo” (1 Cor 13,13). O mistério da Trindade é a fonte, o modelo e a meta do mistério da Igreja: “um povo reunido pela unidade do Pai do Filho e do Espírito”, chamado em Cristo “como sacramento ou sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”65. A comunhão dos fiéis e das Igrejas locais do Povo de Deus se sustenta na comunhão com a Trindade.
156. A vocação ao discipulado missionário é con-vocação à comunhão em sua Igreja. Não há discipulado sem comunhão. Diante da tentação, muito presente na cultura atual de ser cristãos sem Igreja e das novas buscas espirituais individualistas, afirmamos que a fé em Jesus Cristo nos chegou através da comunidade eclesial e ela “nos dá uma família, a família universal de Deus na Igreja Católica. A fé nos liberta do isolamento do eu, porque nos conduz à comunhão”66. Isto significa que uma dimensão constitutiva do acontecimento cristão é o fato de pertencer a uma comunidade concreta na qual podemos viver uma experiência permanente de discipulado e de comunhão com os sucessores dos Apóstolos e com o Papa.
157. Ao receber a fé e o batismo, os cristãos acolhem a ação do Espírito Santo que leva a confessar a Jesus como Filho de Deus e a chamar Deus “Abba”. Como todos os batizados e batizadas da América Latina e do Caribe “através do sacerdócio comum do Povo de Deus”67, somos chamados a viver e a transmitir a comunhão com a Trindade, pois “a evangelização é um chamado à participação da comunhão trinitária”68.
158. Igual às primeiras comunidades de cristãos, hoje nos reunimos assiduamente para “escutar o ensinamento dos apóstolos, viver unidos e participar do partir do pão e nas orações” (At 2,42). A comunhão da Igreja se nutre com o Pão da Palavra de Deus e com o Pão do Corpo de Cristo. A Eucaristia, participação de todos no mesmo Pão de Vida e no mesmo Cálice de Salvação, faz-nos membros do mesmo Corpo (cf. 1 Cor 10,17). Ela é a fonte e o ponto mais alto da vida cristã69, sua expressão mais perfeita e o alimento da vida em comunhão. Na Eucaristia, nutrem-se as novas relações evangélicas que surgem do fato de sermos filhos e filhas do Pai e irmãos e irmãs em Cristo. A Igreja que a celebra é “casa e escola de comunhão”70 onde os discípulos compartilham a mesma fé, esperança e amor a serviço da missão evangelizadora.
159. A Igreja, como “comunidade de amor”71 é chamada a refletir a glória do amor de Deus que, é comunhão, e assim atrair as pessoas e os povos para Cristo. No exercício da unidade desejada por Jesus, os homens e mulheres de nosso tempo se sentem convocados e recorrem à formosa aventura da fé. “Que também eles vivam unidos a nós para que o mundo creia” (Jo 17,21). A Igreja cresce, não por proselitismo mas “por ‘atração’: como Cristo ‘atrai tudo a si’ com a força de seu amor”72. A Igreja “atrai” quando vive em comunhão, pois os discípulos de Jesus serão reconhecidos se amarem uns aos outros como Ele nos amou (cf. Rm 12,4-13; Jo 13,34).
160. A Igreja peregrina vive antecipadamente a beleza do amor que se realizará no final dos tempos na perfeita comunhão com Deus e com os homens73. Sua riqueza consiste em viver, já neste tempo, a “comunhão dos santos”, ou seja, a comunhão nos bens divinos entre todos os membros da Igreja, em particular entre os que peregrinam e os que já gozam da glória74. Constatamos que em nossa Igreja existem numerosos católicos que expressam sua fé e seu pertencimento de forma esporádica, especialmente através da piedade a Jesus Cristo, a Virgem e sua devoção aos santos. Convidamos a esses a aprofundar sua fé e a participar mais plenamente na vida da Igreja recordando-lhes que “em virtude do batismo, estão chamados a ser discípulos e missionários em Jesus Cristo”75.
161. A Igreja é comunhão no amor. Esta é sua essência através da qual é chamada a ser reconhecida como seguidora de Cristo e servidora da humanidade. O novo mandamento é o que une os discípulos entre si, reconhecendo-se como irmãos e irmãs, obedientes ao mesmo Mestre, membros unidos à mesma Cabeça e, por isso, chamados a cuidarem uns dos outros (1 Cor 13; Cl 3,12-14).
162. A diversidade de carismas, ministérios e serviços abre o horizonte para o exercício cotidiano da comunhão através da qual os dons do Espírito são colocados à disposição dos demais para que circule a caridade (cf. 1 Cor 12,4-12). Cada batizado, na verdade, é portador de dons que deve desenvolver em unidade e complementaridade com os dons dos outros, a fim de formar o único Corpo de Cristo, entregue para a vida do mundo. O reconhecimento prático da unidade orgânica e da diversidade de funções assegurará maior vitalidade missionária e será sinal e instrumento de reconciliação e paz para nossos povos. Cada comunidade é chamada a descobrir e integrar os talentos escondidos e silenciosos com os quais o espírito presenteia aos fiéis.
163. No povo de Deus “a comunhão e a missão estão profundamente unidas entre si... A comunhão é missionária e a missão é para a comunhão”76. Nas igrejas locais todos os membros do povo de Deus, segundo suas vocações específicas, são convocados à santidade na comunhão e na missão.
5.2 Lugares eclesiais para a comunhão
5.2.1 A diocese, lugar privilegiado da comunhão
164. A vida em comunidade é essencial à vocação cristã. O discipulado e a missão sempre supõe o pertencimento a uma comunidade. Deus não quis nos salvar isoladamente, mas formando um Povo77. Este é um aspecto que distingue a experiência da vocação cristã de um simples sentimento religioso individual. Por isso a experiência de fé é sempre vivida em uma Igreja local.
165. Reunida e alimentada pela Palavra e pela Eucaristia, a Igreja Católica existe e se manifesta em cada Igreja local, em comunhão com o Bispo de Roma78. Esta é, como afirma o Concílio “uma porção do povo de Deus confiada a um bispo para que a apascente com seu presbitério”79.
166. A Igreja local é totalmente Igreja, mas não é toda a Igreja. É a realização concreta do mistério da Igreja Universal em um determinado tempo e lugar. Para isso, ela deve estar em comunhão com as outras igrejas locais e sob o pastoreio supremo do Papa, o Bispo de Roma, que preside todas as Igrejas.
167. O amadurecimento no seguimento de Cristo e a paixão por anunciá-lo requerem que a Igreja local se renove constantemente em sua vida e ardor missionário. Só assim pode ser, para todos os batizados, casa e escola de comunhão, de participação e solidariedade. Em sua realidade social concreta, o discípulo tem a experiência do encontro com Jesus Cristo vivo, amadurece sua vocação cristã, descobre a riqueza e a graça de ser missionário e anuncia a palavra com alegria.
168. A Diocese, em todas suas comunidades e estruturas, é chamada a ser uma “comunidade missionária”80. Cada Diocese necessita fortalecer sua consciência missionária, saindo ao encontro daquele que ainda não crêem em cristo no espaço de seu próprio território e responder adequadamente aos grandes problemas da sociedade na qual está inserida. Mas também, com espírito materno, é chamada a sair em busca de todos os batizados que não participam na vida das comunidades cristãs.
169. A Diocese, presidida pelo Bispo, é o primeiro espaço da comunhão e da missão. Ele deve estimular e conduzir uma ação pastoral orgânica e vigorosa, de maneira que a variedade de carismas, ministérios, serviços e organizações se orientem em um mesmo projeto missionário para comunicar vida no próprio território. Este projeto, que surge de um caminho de variada participação, torna possível a pastoral orgânica, capaz de dar resposta aos novos desafios. Porque um projeto só é eficiente se cada comunidade cristã, cada paróquia, cada comunidade educativa, cada comunidade de vida consagrada, cada associação ou movimento e cada pequena comunidade se inserirem ativamente na pastoral orgânica de cada diocese. Cada uma é chamada a evangelizar de um modo harmônico e integrado no projeto pastoral da Diocese.
5.2.2 A paróquia, comunidade de comunidades
170. Entre as comunidades eclesiais nas quais vivem e se formam os discípulos e missionários de Jesus Cristo as Paróquias sobressaem. Elas são células vivas da Igreja81 e o lugar privilegiado no qual a maioria dos fiéis tem uma experiência concreta de Cristo e a comunhão eclesial82. São chamadas a ser casas e escolas de comunhão. Um dos maiores desejos que se tem expressado nas Igrejas da América Latina e do Caribe motivando a preparação da V Conferência Geral, é o de uma corajosa ação renovadora das Paróquias, a fim de que sejam de verdade “espaços da iniciação cristã, da educação e celebração da fé, abertas à diversidade de carismas, serviços e ministérios, organizadas de modo comunitário e responsável, integradoras de movimentos de apostolado já existentes, atentas à diversidade cultural de seus habitantes, abertas aos projetos pastorais e supra-paroquiais e às realidades circundantes”83.
171. Todos os membros da comunidade paroquial são responsáveis pela evangelização dos homens e mulheres em cada ambiente. O Espírito Santo que atua em Jesus Cristo é também enviado a todos enquanto membros da comunidade, porque sua ação não se limita ao âmbito individual. A tarefa missionária se abre sempre às comunidades, assim como ocorreu no Pentecostes (cf. At 2,1-13).
172. A renovação das paróquias no início do terceiro milênio exige a reformulação de suas estruturas, para que seja uma rede de comunidades e grupos, capazes de se articular conseguindo que seus membros se sintam realmente discípulos e missionários de Jesus Cristo em comunhão. A partir da paróquia é necessário anunciar o que Jesus Cristo “fez e ensinou” (At 1,1) enquanto esteve entre nós. Sua pessoa e sua obra são a boa nova da salvação anunciada pelos ministros e testemunhas da Palavra que o Espírito desperta e inspira. A palavra acolhida é salvífica e reveladora do mistério de Deus e de sua vontade. Toda paróquia é chamada a ser o espaço onde se receba e acolha a Palavra, celebra-se e se expresse na adoração do Corpo de Cristo e, assim, é a fonte dinâmica do discipulado missionário. Sua própria renovação exige que se deixe iluminar de novo e sempre pela Palavra viva e eficaz.
173. A V Conferência Geral é uma oportunidade para que todas as nossas paróquias se tornem missionárias. O número de católicos que chegam a nossa celebração dominical é limitado; é imenso o número dos distanciados, assim como o número daqueles que não conhecem a Cristo. A renovação missionária das paróquias se impõe, tanto na evangelização das grandes cidades como do mundo rural de nosso Continente, que está exigindo de nós imaginação e criatividade para chegar às multidões que desejam o Evangelho de Jesus Cristo. Particularmente no mundo urbano é urgente a criação de novas estruturas pastorais, visto que muitas delas nasceram em outras épocas para responder às necessidades do âmbito rural.
174. Os melhores esforços das paróquias neste início do terceiro milênio devem estar na convocação e na formação de missionários leigos. Só através da multiplicação deles poderemos chegar a responder às exigências missionárias do momento atual. Também é importante recordar que o campo específico da atividade evangelizadora laica é o complexo mundo do trabalho, da cultura, das ciências e das artes, da política, dos meios de comunicação e da economia, assim como as esferas da família, da educação, da vida profissional, sobretudo nos contextos onde a Igreja se faz presente somente por eles84.
175. Seguindo o exemplo da primeira comunidade cristã (cf At 2,46-47), a comunidade paroquial se reúne para partir o pão da Palavra e da Eucaristia e perseverar na catequese, na vida sacramental e na prática da caridade85. Na celebração eucarística ela renova sua vida em Cristo. A Eucaristia, na qual se fortalece a comunidade dos discípulos, é para a Paróquia uma escola de vida cristã. Nela, juntamente com a adoração eucarística e com a prática do sacramento da reconciliação para comungar dignamente, seus membros são preparados para dar frutos permanentes de caridade, reconciliação e justiça para a vida do mundo.
a) A Eucaristia, fonte e ponto alto da vida cristã, faz com que nossas paróquias sejam sempre comunidades eucarísticas que vivem sacramentalmente o encontro com o Cristo Salvador. Elas também celebram com alegria:b) No batismo: a incorporação de um novo membro a Cristo e a seu corpo que é a Igreja.c) Na Confirmação: a perfeição do caráter batismal e o fortalecimento do pertencimento eclesial e do amadurecimento apostólico.d) Na Penitência ou Reconciliação: a conversão que todos necessitamos para combater o pecado, que nos faz incoerentes com os compromissos batismais.e) Na Unção dos Enfermos; o sentido evangélico dos membros da comunidade, seriamente enfermos ou em perigo de morte.f) No sacramento da Ordem: o dom do ministério apostólico que continua sendo exercido na Igreja para o serviço pastoral de todos os fiéis.g) No Matrimônio: o amor entre o casal que como graça de Deus germina e cresce até a maturidade tornando efetiva na vida cotidiana a doação total que mutuamente fizeram ao se casar.
176. A Eucaristia, sinal da unidade com todos, que prolonga e faz presente o mistério do Filho de Deus feito homem (cf. Fl 2,6-8), coloca-nos a exigência de uma evangelização integral. A imensa maioria dos católicos de nosso continente vivem sob o flagelo da pobreza. Esta tem diversas expressões: econômica, física, espiritual, moral, etc. Se Jesus veio para que todos tenhamos vida em abundância, a paróquia tem a maravilhosa ocasião de responder às grande necessidades de nossos povos. Para isso tem que seguir o caminho de Jesus e chegar a ser a boa samaritana como Ele. Cada paróquia deve chegar a concretizar em sinais solidários seu compromisso social nos diversos meios em que ela se move, com toda “a imaginação da caridade”86. Não pode ser alheia aos grandes sofrimentos que vive a maioria de nossa gente e que com muita freqüência são pobrezas escondidas. Toda autêntica missão unifica a preocupação pela dimensão transcendente do ser humano e por todas suas necessidades concretas, para que todos alcancem a plenitude que Jesus Cristo oferece.
177. Bento XVI nos recorda que “o amor à Eucaristia leva também a apreciar cada vez mais o Sacramento da Reconciliação”87. Vivemos em uma cultura marcada por um forte relativismo e uma perda do sentido do pecado que nos leva a esquecer a necessidade do sacramento da Reconciliação que nos permite aproximar dignamente para receber a Eucaristia. Como pastores, somos chamados a fomentar a confissão freqüente. Convidamos nossos presbíteros a dedicar tempo suficiente para oferecer o sacramento da reconciliação com zelo pastoral e entranhas de misericórdia, a preparar dignamente os lugares da celebração, de maneira que sejam expressão do significado deste sacramento. Igualmente, pedimos a nossos fiéis que valorizem este presente maravilhoso de Deus e se aproximem dele para renovar a graça batismal e viver, com maior autenticidade, o chamado de Jesus a serem seus discípulos e missionários. Nós, bispos e presbíteros, ministros da reconciliação, somos chamados a viver, de maneira particular, na intimidade com o Mestre. Somos conscientes de nossa fraqueza e da necessidade de sermos purificados pela graça do sacramento, que se nos oferece para nos identificar, cada vez mais, com Cristo, Bom Pastor e missionário do Pai. Simultaneamente, com plena disponibilidade, temos a alegria de ser ministros da reconciliação, e da mesma maneira nos aproximamos frequentemente, em um caminho penitencial, ao Sacramento da Reconciliação.
5.2.2 Comunidades Eclesiais de Base e Pequenas comunidades
178. Na experiência eclesial de algumas igrejas da América Latina e do Caribe, as Comunidades Eclesiais de Base tem sido escolas que tem ajudado a formar cristãos comprometidos com sua fé, discípulos e missionários do Senhor, como testemunhas de uma entrega generosa, até mesmo com o derramar do sangue de muitos de seus membros. Elas abraçam a experiência das primeiras comunidades, como estão descritas nos Atos dos Apóstolos (At 2,42-47). Medellín reconheceu nelas uma célula inicial de estruturação eclesial e foco de fé e evangelização88. Puebla constatou que as pequenas comunidades, sobretudo as comunidades eclesiais de base, permitiram ao povo chegar a um conhecimento maior da Palavra de Deus, ao compromisso social em nome do Evangelho, ao surgimento de novos serviços leigos e à educação da fé dos adultos89, no entanto, também constatou “que não tem faltado membros de comunidade ou comunidades inteiras que, atraídas por instituições puramente leigas ou radicalizadas ideologicamente, foram perdendo o sentido eclesial90”.
179. As comunidades eclesiais de base, no seguimento missionário de Jesus, têm a Palavra de Deus como fonte de sua espiritualidade e a orientação de seus pastores como guia que assegura a comunhão eclesial. Demonstram seu compromisso evangelizador e missionário entre os mais simples e afastados e são expressão visível da opção preferencial pelos pobres. São fonte e semente de vários serviços e ministérios a favor da vida na sociedade e na Igreja. Mantendo-se em comunhão com seu Bispo e inserindo-se no projeto pastoral diocesano, as CEBs se convertem em um sinal de vitalidade na Igreja particular. Atuando, dessa forma, juntamente com os grupos paroquiais, associações e movimentos eclesiais, podem contribuir para revitalizar as paróquias fazendo das mesmas uma comunidade de comunidades. Em seu esforço de corresponder aos desafios dos tempos atuais, as comunidades eclesiais de base terão cuidado para não alterar o tesouro precioso da Tradição e do Magistério da Igreja.
180. Como resposta às exigências da evangelização, junto com as comunidades eclesiais de base, existem outras formas válidas de pequenas comunidades, e inclusive redes de comunidades, de movimentos, grupos de vida, de oração e de reflexão da palavra de Deus. Todas as comunidades e grupos eclesiais darão fruto na medida em que a Eucaristia seja o centro de sua vida e a Palavra de Deus seja o farol de seu caminho e sua atuação na única Igreja de Cristo.
5.2.4 As Conferências Episcopais e a comunhão entre as Igrejas
181. Os bispos, além do serviço à comunhão que prestam em suas igrejas locais, exercem este ofício junto com as outras igrejas diocesanas. Deste modo, realizam e manifestam o vínculo de comunhão que as une entre si. Esta experiência de comunhão episcopal, sobretudo depois do Concílio Vaticano II, deve ser entendida como um encontro com o Cristo vivo, presente nos irmãos que estão reunidos em seu nome91. Para crescer nessa fraternidade e na co-responsabilidade pastoral, os bispos devem cultivar a espiritualidade da comunhão, a fim de acrescentar os vínculos de colegialidade que os unem aos demais bispos de sua própria Conferência, e também a todo o Colégio Episcopal e à Igreja de Roma, presidida pelo sucessor de Pedro: cum Petro et sub Petro92. Na Conferência Episcopal, os bispos encontram seu espaço de discernimento solidário sobre os grandes problemas da sociedade e da Igreja e o estímulo para oferecer orientações pastorais que animem os membros do Povo de Deus a assumirem com fidelidade e decisão sua vocação de serem discípulos missionários.
182. O Povo de Deus se constrói como uma comunhão de Igrejas locais e, através delas, como um intercâmbio entre as culturas. Neste marco, os bispos e as Igrejas locais expressam sua solicitude para com todas as Igrejas, especialmente para com mais próximas, reunidas nas províncias eclesiásticas, nas conferências regionais e em outras formas de associação interdiocesana no interior de cada Nação ou entre países de uma mesma Região ou Continente. Estas várias formas de comunhão estimulam com vigor as “relações de irmandade entre as dioceses e as paróquias”93 e fomentam “uma maior cooperação entre as igrejas irmãs”94.
183. O CELAM é um organismo eclesial de fraterna ajuda episcopal, cuja preocupação fundamental é colaborar para a evangelização do Continente. Ao longo de seus 50 anos têm oferecido serviços muito importantes às Conferências Episcopais e às nossas Igrejas locais, entre as quais destacamos as Conferências Gerais, os Encontros Regionais, os Seminários de estudo, em seus diversos organismos e instituições. O resultado de todo este esforço é uma perceptível fraternidade entre os bispos do Continente e uma reflexão teológica e uma linguagem pastoral comuns que favorecem a comunhão e o intercâmbio entre as Igrejas.
5.3. Discípulo missionários com vocações específicas
184. A condição do discípulo brota de Jesus Cristo como de sua fonte pela fé e pelo batismo e cresce na Igreja, comunidade onde todos os seus membros adquirem igual dignidade e participam de diversos ministérios e carismas. Deste modo, realiza-se na Igreja a forma própria e específica de viver a santidade batismal a serviço do Reino de Deus.
185. No fiel cumprimento de sua vocação batismal, o discípulo deve levar em consideração os desafios que o mundo de hoje apresenta à Igreja de Jesus, entre outros: o êxodo de fiéis para seitas e outros grupos religiosos; as correntes culturais contrárias a Cristo e a Igreja; a desmotivação de sacerdotes frente ao vasto trabalho pastoral; a escassez de sacerdotes em muitos lugares; a mudança de paradigmas culturais; o fenômeno da globalização e a secularização; os graves problemas de violência, pobreza e injustiça; a crescente cultura da morte que afeta a vida em todas as suas formas.
5.3.1 Os bispos, discípulos missionários de Jesus Sumo Sacerdote
186. Os bispos, como sucessores dos apóstolos junto com o Sumo Pontífice e sob sua autoridade95, com fé e esperança aceitamos a vocação de servir ao Povo de Deus, conforme o coração de Cristo, o Bom Pastor. Junto com todos os fiéis e em virtude do batismo somos, antes de mais nada, discípulos e membros do Povo de Deus. Como todos os batizados e, junto com eles, queremos seguir a Jesus, Mestre de vida e de verdade, na comunhão da Igreja. Como Pastores, servidores do Evangelho, somos conscientes de termos sido chamados a viver o amor a Jesus Cristo e à Igreja na intimidade da oração e da doação de nós mesmos aos irmãos e irmãs, a quem presidimos na caridade. É como disse santo Agostinho: com vocês sou cristão, para vocês sou bispo.
187. O Senhor nos chama a promover por todos os meios a caridade e a santidade dos fiéis. Empenhamo-nos para que o povo de Deus cresça na graça mediante os sacramentos presididos por nós mesmos e pelos demais ministros ordenados. Somos chamados a ser mestres da fé e, portanto, a anunciar a Boa Nova, que é fonte de esperança para todos e a velar e promover com solicitude e coragem a fé católica. Em virtude da íntima fraternidade que provêm do sacramento da Ordem, temos o dever de cultivar de maneira especial os vínculos que nos unem a nossos presbíteros e diáconos. Servimos a Cristo e à Igreja mediante o discernimento da vontade do Pai, para refletir o Senhor em nosso modo de pensar, de sentir, de falar e de se comportar em meio aos homens. Em síntese, os bispos têm de ser testemunhas próximas e alegres de Jesus Cristo, Bom Pastor (cf. Jo 10,1-18).
188. Os bispos, como pastores e guias espirituais das comunidades a nós encomendadas, são chamados a “fazer da Igreja uma casa e escola de comunhão”96. Como animadores da comunhão, temos a missão de acolher, discernir e animar carismas, ministérios e serviços na Igreja. Como padres e centro da unidade, esforçamo-nos por apresentar ao mundo o rosto de uma Igreja na qual todos se sintam acolhidos como em sua própria casa. Para todo o Povo de Deus, em especial para os presbíteros, procuramos ser padres, amigos e irmãos sempre abertos ao diálogo, especialmente para os presbíteros.
189. Para crescer nestas atitudes, os bispos precisam procurar a união constante com o Senhor, cultivar a espiritualidade de comunhão com todos os que crêem em Cristo e promover os vínculos de colegialidade que os unem ao Colégio Episcopal, particularmente com seu cabeça, o Bispo de Roma. Não podemos esquecer que o bispo é princípio e construtor da unidade de sua Igreja Local e santificador de seu povo, testemunha de esperança e padre dos fiéis, especialmente dos pobres, e que sua principal tarefa é ser mestres da fé, anunciador da Palavra de Deus e da administração dos sacramentos, como servidores da grei.
190. Todo o Povo de Deus deve agradecer aos Bispos eméritos que, como pastores têm entregado sua vida a serviço do Reino de Deus, sendo discípulos e missionários. A eles acolhemos com carinho e aproveitamos sua vasta experiência apostólica que, não obstante, pode produzir muitos frutos. Eles mantêm profundos vínculos com as dioceses que lhes foram confiadas às quais estão unidos por sua caridade e sua oração.
5.3.2 Os presbíteros, discípulos missionários de Jesus Bom Pastor
5.3.2.1 Identidade e missão dos presbíteros
191. Valorizamos e agradecemos com alegria que a imensa maioria dos presbíteros vivam seu ministério com fidelidade e sejam modelo para os demais, que separem tempo para sua formação permanente, que cultivem uma vida espiritual que estimule os demais presbíteros e seja centrada na escuta da palavra de Deus e na celebração diária da Eucaristia: “Minha Missa é minha vida e minha vida é uma Missa prolongada!”97. Agradecemos também àqueles que foram enviados a outras Igrejas motivados por um autêntico sentido missionário.
192. Um olhar ao nosso momento atual nos mostra situações que afetam e desafiam a vida e o ministério de nossos presbíteros. Entre outras coisas, a identidade teológica do ministério presbiterial, sua inserção na cultura atual e situações que incidem em sua existência.
193. O primeiro desafio tem relação com a identidade teológica do ministério presbiterial. O Concílio Vaticano II estabelece o sacerdócio ministerial a serviço do sacerdócio comum dos fiéis, e cada um, ainda que de maneira qualitativamente diferente, participa do único sacerdócio de Cristo98. Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote, tem-nos redimido e nos permitido participar de sua vida divina. N’Ele, somos todos filhos do mesmo Pai e irmãos entre nós. O sacerdote não pode cair na tentação de se considerar somente um mero delegado ou só um representante da comunidade, mas sim em ser um dom para ela, pela unção do Espírito e por sua especial união com Cristo. “Todo Sumo Sacerdote é tomado dentre os homens e colocado para intervir a favor dos homens em tudo aquilo que se refere ao serviço de Deus” (Hb 5,1).
194. O segundo desafio se refere ao ministério do presbítero inserido na cultura atual. O presbítero é chamado a conhecê-la para semear nela a semente do Evangelho, ou seja, para que a mensagem de Jesus chegue a ser uma interpelação válida, compreensível, cheia de esperança e relevante para a vida do homem e da mulher de hoje, especialmente para os jovens. Este desafio inclui a necessidade de potencializar adequadamente a formação inicial e permanente dos presbíteros, em suas quatro dimensões; humana, espiritual, intelectual e pastoral99.
195. O terceiro desafio se refere aos aspectos vitais e afetivos, ao celibato e a uma vida espiritual intensa fundada na caridade pastoral, que se nutre na experiência pessoal com Deus e na comunhão com os irmãos; também o cultivo de relações fraternas com o Bispo, com os demais presbíteros da diocese e com os leigos. Para que o ministério do presbítero seja coerente e testemunhal, ele deve amar e realizar sua tarefa pastoral em comunhão com o bispo e com os demais presbíteros da diocese. O ministério sacerdotal que brota da Ordem Sagrada tem uma “radical forma comunitária” e só pode ser desenvolvido como uma “tarefa coletiva”100. O sacerdote deve ser homem de oração, maduro em sua opção de vida por Deus, fazer uso dos meios de perseverança, como o Sacramento da confissão, da devoção à Santíssima Virgem, da mortificação e da entrega apaixonada por sua missão pastoral.
196. Em particular, o presbítero é convidado a valorizar o celibato, como um dom de Deus, que lhe possibilita uma especial configuração com o estilo de vida do próprio Cristo e o faz sinal de sua caridade pastoral na entrega a Deus e aos homens com o coração pleno e indivisível. “Na verdade, esta opção do sacerdote é uma expressão singular da entrega que o configura com Cristo e da entrega de si mesmo pelo Reino de Deus”101. O celibato solicita assumir com maturidade a própria afetividade e sexualidade, vivendo-as com serenidade e alegria em um caminho comunitário102.
197. Outros desafios são de caráter estrutural, como por exemplo, a existência de paróquias muito grandes que dificultam o exercício de uma pastoral adequada: paróquias muito pobres que fazem com que os pastores se dediquem a outras tarefas para poder subsistir; paróquias situadas em regiões de extrema violência e insegurança e a falta e má distribuição de presbíteros nas Igrejas do Continente.
198. O presbítero, a imagem do Bom Pastor, é chamado a ser homem de misericórdia e de compaixão, próximo a seu povo e servidor de todos, particularmente dos que sofrem grandes necessidades. A caridade pastoral, fonte da espiritualidade sacerdotal, anima e unifica sua vida e ministério. Consciente de suas limitações, ele valoriza a pastoral orgânica e se insere com gosto em seu presbitério.
199. O Povo de Deus sente a necessidade de presbíteros-discípulos: que tenham uma profunda experiência de Deus, configurados com o coração do Bom Pastor, dóceis às orientações do Espírito, que se nutram da Palavra de Deus, da Eucaristia e da oração; de presbíteros-missionários; movidos pela caridade pastoral: que os leve a cuidar do rebanho a eles confiados e a procurar aos mais distanciados pregando a Palavra de Deus, sempre em profunda comunhão com seu Bispo, os presbíteros, diáconos, religiosos, religiosas e leigos; de presbíteros-servis da vida: que estejam atentos às necessidades dos mais pobres, comprometidos na defesa dos direitos dos mais fracos e promotores da cultura da solidariedade. Também de presbíteros cheios de misericórdia, disponíveis para administrar o sacramento da reconciliação.
200. Tudo isto requer que as Dioceses e as Conferências Episcopais desenvolvam uma pastoral presbiteral que privilegie a espiritualidade específica e a formação permanente e integral dos sacerdotes. A Exortação Apostólica Pastores Dabo Vobis, enfatiza que: “A formação permanente, precisamente porque é “permanente”, deve acompanhar os sacerdotes sempre, isto é, em qualquer período e situação de sua vida, assim como nos diversos cargos de responsabilidade eclesial que sejam confiados a eles; tudo isso, levando em consideração, naturalmente, as possibilidades e características próprias da idade, condições de vida e tarefas encomendadas”103. Levando em consideração o número de presbíteros que abandonaram o ministério, cada Igreja local deve procurar estabelecer com eles relações de fraternidade e de mútua colaboração conforme as normas prescritas pela Igreja.
5.3.2.2 Os párocos, animadores de uma comunidade de discípulos missionários
201. A renovação da paróquia exige atitudes novas dos párocos e dos sacerdotes que estão a serviço dela. A primeira exigência é que o pároco seja um autêntico discípulo de Jesus Cristo, porque só um sacerdote enamorado do Senhor pode renovar uma paróquia. Mas ao mesmo tempo, deve ser um ardoroso missionário que vive o constante desejo de buscar os afastados e não se contenta com a simples administração.
202. Mas, sem dúvida, não basta a entrega generosa do sacerdote e das comunidades de religiosos. Requer-se que todos os leigos se sintam co-responsáveis na formação dos discípulos e na missão. Isto supõe que os párocos sejam promotores e animadores da diversidade missionária e que dediquem tempo generosamente ao sacramento da reconciliação. Uma paróquia renovada multiplica as pessoas que realizam serviços e acrescenta os ministérios. Igualmente, neste campo, se requer imaginação para encontrar resposta aos muitos e sempre mutáveis desafios que a realidade coloca, exigindo novos serviços e ministérios. A integração de todos eles na unidade de um único projeto evangelizador é essencial para assegurar uma comunhão missionária.
203. Uma paróquia, comunidade de discípulos missionários, requer organismos que superem qualquer tipo de burocracia. Os Conselhos pastorais paroquiais terão que estar formados por discípulos missionários constantemente preocupados em chegar a todos. O Conselho de assuntos Econômicos junto a toda a comunidade paroquial, trabalhará para obter os recursos necessários, de maneira que a missão avance e se faça realidade em todos os ambientes. Estes e todos os organismos precisam estar animados por uma espiritualidade de comunhão missionária: “Sem este caminho espiritual de pouco serviriam os instrumentos externos da comunhão. Mais do que modos de expressão e de crescimento, esses instrumentos se tornariam meios sem alma, máscaras de comunhão”104.
204. Dentro do território paroquial, a família cristã é a primeira e mais básica comunidade eclesial. Nela são vividos e transmitidos os valores fundamentais da vida cristã. Ela é chamada de “Igreja Doméstica”105. Ali, os pais desempenham o papel de primeiros transmissores da fé a seus filhos, ensinando-lhes através do exemplo e da palavra, a serem verdadeiros discípulos missionários. Ao mesmo tempo, quando esta experiência de discipulado missionário é autêntica, “uma família se faz evangelizadora de muitas outras famílias e do ambiente em que ela vive”106. Isto opera na vida diária “dentro e através dos atos, das dificuldades, dos acontecimentos da existência de cada dia”107. O espírito, que tudo faz, novo atua inclusive dentro de situações irregulares nas quais se realiza um processo de transmissão de fé, mas temos de reconhecer que, nas atuais circunstâncias, às vezes este processo se encontra com muitas dificuldades. Não se propõe que a Paróquia chegue só a sujeitos afastados, mas à vida de todas as famílias, para fortalecer sua dimensão missionária.
5.3.3 Os diáconos permanentes, discípulos de Jesus Servo
205. Alguns discípulos e missionários do Senhor são chamados a servir à Igreja como diáconos permanentes, fortalecidos, em sua maioria, pela dupla sacramentalidade do matrimônio e da Ordem. Eles são ordenados para o serviço da Palavra, da caridade e da liturgia, especialmente para os sacramentos do batismo e do Matrimônio; também para acompanhar a formação de novas comunidades eclesiais, especialmente nas fronteiras geográficas e culturais, onde ordinariamente não chega a ação evangelizadora da Igreja.
206. Cada diácono permanente deve cultivar esmeradamente sua inserção no corpo diaconal, em fiel comunhão com seu bispo e em estreita unidade com os presbíteros e os demais membros do povo de Deus. Quando estão a serviço de uma paróquia, é necessário que os diáconos e presbíteros procurem o diálogo e trabalhem em comunhão.
207. Eles devem receber uma adequada formação humana, espiritual, doutrinal e pastoral com programas adequados, que levem em consideração – no caso dos que estão casados – à esposa e sua família. Sua formação os habilitará a exercer seu ministério com fruto nos campos da evangelização, da vida das comunidades, da liturgia e da ação social, especialmente com os mais necessitados, dando assim, testemunho de Cristo servindo ao lado dos enfermos, dos que sofrem, dos migrantes e refugiados, dos excluídos e das vítimas da violência e encarcerados.
208. A V Conferência espera dos diáconos um testemunho evangélico e um impulso missionário para que sejam apóstolos em suas famílias, em seus trabalhos, em suas comunidades e nas novas fronteiras da missão. Não é necessário criar nos candidatos ao diaconato expectativas permanentes que superem a natureza própria que corresponde ao grau do diaconato.
5.3.4 Os fiéis leigos e leigas, discípulos e missionários de Jesus, Luz do Mundo
209. Os fiéis leigos são “os cristãos que estão incorporados a Cristo pelo batismo, que formam o povo de Deus e participam das funções de Cristo: sacerdote, profeta e rei. Eles realizam, segundo sua condição, a missão de todo o povo cristão na Igreja e no mundo”108. São “homens da Igreja no coração do mundo, e homens do mundo no coração da Igreja”109.
210. Sua missão própria e específica se realiza no mundo, de tal modo que, com seu testemunho e sua atividade, eles contribuam para a transformação das realidades e para a criação de estruturas justas segundo os critérios do Evangelho. “O espaço próprio de sua atividade evangelizadora é o mundo vasto e complexo da política, da realidade social e da economia, como também o da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional, dos ‘mass media’, e outras realidades abertas à evangelização, como são o amor, a família, a educação das crianças e adolescentes, o trabalho profissional e o sofrimento”110. Além disso, eles tem o dever de fazer crível a fé que professam, mostrando a autenticidade e coerência em sua conduta.
211. Os leigos também são chamados a participar na ação pastoral da Igreja, primeiro com o testemunho de sua vida e, em segundo lugar, com ações no campo da evangelização, da vida litúrgica e outras formas de apostolado segundo as necessidades locais sob a orientação de seus pastores. Eles estarão dispostos a abrir para eles espaços de participação e a confiar ministérios e responsabilidades em uma Igreja onde todos vivam de maneira responsável seu compromisso cristão. Aos catequistas, delegados da Palavra e animadores de comunidades que cumprem uma magnífica tarefa dentro da Igreja111, reconhecemos e animamos a continuarem o compromisso que adquiriram no batismo e na confirmação.
212. Para cumprir sua missão com responsabilidade pessoal, os leigos necessitam de uma sólida formação doutrinal, pastoral, espiritual e um adequado acompanhamento para darem testemunho de Cristo e dos valores do reino no âmbito da vida social, econômica, política e cultural.
213. Hoje, toda a Igreja na América e no Caribe querem se colocar em estado de missão. A evangelização do Continente, nos dizia o papa João Paulo II, não pode se realizar hoje sem a colaboração dos fiéis leigos112. Eles hão de ser parte ativa e criativa na elaboração e execução de projetos pastorais a favor da comunidade. Isto exige, da parte dos pastores, uma maior abertura de mentalidade para que entendam e acolham o “ser” e o “fazer” do leigo na Igreja, que por seu batismo e sua confirmação, é discípulo e missionário de Jesus Cristo. Em outras palavras, é necessário que o leigo seja levado em consideração com um espírito de comunhão e de participação113.
214. Neste contexto é um sinal de esperança, o fortalecimento de várias associações leigas, movimentos apostólicos eclesiais e caminhos de formação cristã, comunidades eclesiais e novas comunidades, que devem ser apoiados pelos pastores. Eles ajudam muitos batizados e muitos grupos missionários a assumir com maior responsabilidade sua identidade cristã e colaborar mais ativamente na missão evangelizadora. Nas últimas décadas, várias associações e movimentos apostólicos laicos desenvolveram um forte protagonismo. Por isso, um adequado discernimento, incentivo, coordenação e condução pastoral, sobretudo da parte dos sucessores dos Apóstolos, contribuirá para ordenar este dom para a edificação da única Igreja114.
215. Reconhecemos o valor e a eficiência dos Conselhos paroquiais, Conselhos diocesanos e nacionais de fiéis leigos, porque incentivam a comunhão e a participação na Igreja e sua presença ativa no mundo. A construção da cidadania no sentido mais amplo e a construção de eclesialidade nos leigos, é um só e único movimento.
5.3.5 Os consagrados e consagradas, discípulos missionários de Jesus, Testemunha do Pai
216. A vida consagrada é um dom do pai, por meio do Espírito, à sua Igreja115, e constitui um elemento decisivo para sua missão116. Expressa-se na vida monástica, contemplativa e ativa, nos institutos seculares, naqueles que se inserem nas sociedades de vida apostólica e outras novas formas. É um caminho de especial seguimento de Cristo, no qual cada um deve dedicar-se Ele com um coração indivisível e, colocar-se, como Ele, a serviço de Deus e da humanidade, assumindo a forma de vida que Cristo escolheu para vir a este mundo: uma vida virginal, pobre e obediente117.
217. Em comunhão com os pastores, os consagrados e consagradas são chamados a fazer de seus lugares de presença, de sua vida fraterna em comunhão e de suas obras, lugares de anúncio explícito do Evangelho, principalmente aos mais pobres, como tem sido em nosso continente desde o início da evangelização. Deste modo, segundo seus carismas fundacionais, eles colaboram com a gestação de uma nova geração de cristãos discípulos e missionários e de uma sociedade onde se respeite a justiça e a dignidade da pessoa humana.
218. A partir do seu ser, a vida consagrada é chamada a ser especialista em comunhão, tanto no interior da Igreja quanto no interior da sociedade. A vida e missão dos consagrados devem estar inseridas na Igreja local e em comunhão com o Bispo. Para isso, é necessário criar procedimentos comuns e iniciativas de colaboração que levem a um conhecimento e valorização mútuos e a um compartilhar da missão com todos os chamados a seguir a Jesus.
219. Em um continente no qual se manifestam sérias tendências de secularização, também na vida consagrada, os religiosos são chamados a dar testemunho da absoluta primazia de Deus e de seu reino. A vida consagrada se converte em testemunha do Deus da vida em uma realidade que relativiza seu valor (obediência), é testemunha de liberdade frente ao mercado e às riquezas que valorizam as pessoas pelo ter (pobreza), e é testemunha de uma entrega no amor radical e livre a Deus e à humanidade frente à erotização e banalização das relações (castidade).
220. Na atualidade da América latina e do caribe, a vida consagrada é chamada a ser uma vida discipular, apaixonada por Jesus-caminho ao Pai misericordioso, e por isso, de caráter profundamente místico e comunitário. É chamada a ser uma vida missionária, apaixonada pelo anúncio de Jesus-verdade do Pai, por isso mesmo, radicalmente profética, capaz de mostrar a luz de Cristo às sombras do mundo atual e os caminhos de uma vida nova, para o que se requer um profetismo que aspire até a entrega da vida em continuidade com a tradição de santidade e martírio de tantas e tantos consagrados ao longo da história do Continente. E, a serviço do mundo, uma vida apaixonada por Jesus-vida do Pai, que se faz presente nos mais pequenos e nos últimos a quem serve, a partir do próprio carisma e espiritualidade.
221. De maneira especial, a América latina e o Caribe necessitam da vida contemplativa, testemunha de que só deus basta para preencher a vida de sentido e de alegria. “Em um mundo que continua perdendo o sentido do divino, diante da supervalorização do material, vocês queridas religiosas, comprometidas desde seus claustros a serem testemunhas dos valores pelos quais vivem, sejam testemunhas do Senhor para o mundo de hoje, infundam com sua oração um novo sopro de vida na Igreja e no homem atual”118.
222. O Espírito segue despertando novas formas de vida consagrada nas Igrejas, aos quais necessitam ser acolhidas e acompanhadas em seu crescimento e desenvolvimento no interior das Igrejas locais. O Bispo precisa usar um discernimento sério e ponderado sobre seu sentido, necessidade e autenticidade. Os Pastores valorizam como um inestimável dom a virgindade consagrada, daqueles que se entregam a Cristo e a sua Igreja com generosidade e coração indivisível, e se propõem velar por sua formação inicial e permanente.
223. As Confederações de Institutos Seculares (CISAL) e de religiosas e religiosos (CLAR) e as Conferências Nacionais são estruturas de serviço e de animação que, em autêntica comunhão com os Pastores e sob sua orientação, em um diálogo fecundo e amistoso119, estão convocadas a estimular seus membros a realizarem a missão como discípulos e missionários a serviço do reino de Deus120.
224. Os povos latino-americanos e caribenhos esperam muito da vida consagrada, especialmente do testemunho e contribuição das religiosas contemplativas e de vida apostólica que, junto aos demais irmãos religiosos, membros de Institutos Seculares e Sociedades de Vida Apostólica, mostram o rosto materno da Igreja. Seu desejo de escuta, acolhida e serviço, e seu testemunho dos valores alternativos do Reino, mostram que uma nova sociedade latino-americana e caribenha, fundada em Cristo, é possível121.
5.4 Os que deixaram a Igreja para se unir a outros grupos religiosos
225. Segundo nossa experiência pastoral, muitas vezes, a pessoa sincera que sai de nossa Igreja não o faz pelo que os grupos “não católicos” crêem, mas, fundamentalmente por causa de como eles vivem; não por razões doutrinais, mas vivenciais; não por motivos estritamente dogmáticos, mas pastorais; não por problemas teológicos, mas metodológicos de nossa Igreja. Esperam encontrar respostas a suas inquietações. Procuram, não sem sérios perigos, responder a algumas aspirações que, quem sabe, não têm encontrado, como deveria ser, na Igreja.
226. Em nossa Igreja temos de reforçar quatro eixos:
a) A experiência religiosa. Em nossa Igreja devemos oferecer a todos os nossos fiéis um “encontro pessoal com Jesus Cristo”, uma experiência religiosa profunda e intensa, um anúncio kerigmático e o testemunho pessoal dos evangelizadores, que leve a uma conversão pessoal e a uma mudança de vida integral.b) A vivência comunitária. Nossos fiéis procuram comunidades cristãs, onde sejam acolhidos fraternalmente e se sintam valorizados, visíveis e eclesialmente incluídos. É necessário que nossos fiéis se sintam realmente membros de uma comunidade eclesial e co-responsáveis em seu desenvolvimento. Isso permitirá um maior compromisso e entrega em e pela Igreja.c) A formação bíblico-doutrinal. Junto a uma forte experiência religiosa e uma destacada convivência comunitária, nossos fiéis necessitam aprofundar o conhecimento da Palavra de Deus e os conteúdos da fé, visto que esta é a única maneira de amadurecer sua experiência religiosa. Neste caminho acentuadamente vivencial e comunitário, a formulação doutrinal não se experimenta como um conhecimento teórico e frio, mas como uma ferramenta fundamental e necessária no crescimento espiritual, pessoal e comunitário.d) O compromisso missionário de toda a comunidade. Ela sai ao encontro dos afastados, interessa-se por sua situação, a fim de reencantá-los com a Igreja e convidá-los a novamente se envolverem com ela.
5.5 Diálogo ecumênico e interreligioso
5.5.1 Diálogo ecumênico para que o mundo creia
227. A compreensão e a prática da eclesiologia de comunhão nos conduz ao diálogo ecumênico. A relação com os irmãos e irmãs batizados de outras Igrejas e comunidades eclesiais é um caminho irrenunciável para o discípulo e missionário122, pois a falta de unidade representa um escândalo, um pecado e um atraso do cumprimento do desejo de Cristo: “para que todos sejam um, como tu, Pai,estás em mim e eu em ti. E para que também eles estejam em nós, a fim de que o mundo acredite que tu me enviaste” (Jo 17,21).
228. O ecumenismo não se justifica por uma exigência simplesmente sociológica mas evangélica, trinitária e batismal: “expressa a comunhão real, ainda que imperfeita” que já existe entre “os que foram regenerados pelo batismo” e o testemunho concreto de fraternidade123. O Magistério insiste no caráter trinitário e batismal do esforço ecumênico, onde o o diálogo emerge como atitude espiritual e prática, em um caminho de conversão e reconciliação. Só assim chegará “o dia em poderemos celebrar, junto com todos os que crêem em Cristo, a divina Eucaristia”124. Uma via fecunda para avançar para a comunhão é recuperar em nossas comunidades o sentido do compromisso do Batismo.
229. Hoje, faz-se necessário reabilitar a autêntica apologética que faziam os pais da Igreja como explicação da fé. A apologética não tem porque ser negativa ou meramente defensiva per se. Implica, na verdade, a capacidade de dizer o que está em nossas mentes e corações de forma clara e convincente, como disse São Paulo “fazendo a verdade na caridade” (Ef 4,15). Mais do que nunca os discípulos e missionários de Cristo de hoje necessitam de uma apologética renovada para que todos possam ter vida n’Ele.
230. Às vezes esquecemos que a unidade é, antes de tudo, um dom do Espírito Santo, e oramos pouco por esta intenção. “Esta conversão do coração e esta santidade de vida, juntamente com as orações particulares e públicas pela unidade dos cristãos, hão de ser considerado como a alma de todo o movimento ecumênico e com razão pode se chamar ecumenismo espiritual”125.
231. Faz mais de quarenta anos que o Concílio vaticano II reconheceu a ação do Espírito Santo no movimento pela unidade dos cristãos. Desde então, temos colhido muitos frutos. Neste campo, necessitamos de mais agentes de diálogo e melhor qualificados. É bom tornar mais conhecidas as declarações que a própria Igreja Católica tem subscrito no campo do ecumenismo desde o Concílio. Os diálogos bilaterais e multilaterais têm produzido bons frutos. Também é oportuno estudar o Diretório ecumênico e suas indicações em relação a catequese, a liturgia, a formação presbiteral e a pastoral126. A mobilidade humana, característica do mundo atual, pode ser ocasião propícia para o diálogo ecumênico da vida127.
232. Em nosso contexto, o surgimento de novos grupos religiosos, mais a tendência a confundir o ecumenismo com o diálogo interreligioso, tem causado obstáculos na conquista de maiores frutos no diálogo ecumênico. Por isso mesmo, incentivamos os ministros ordenados, aos leigos e á vida consagrada a participarem de organismos ecumênicos com uma cuidadosa preparação e um esmerado seguimento dos pastores e realizarem ações conjuntas nos diversos campos da vida eclesial, pastoral e social. Na verdade, o contato ecumênico favorece a estima recíproca, convoca á escuta comum da palavra de Deus e chama à conversão aqueles que se declaram discípulos e missionários de Jesus Cristo. Esperamos que a promoção da unidade dos cristãos, assumida pelas Conferências Episcopais, consolide-se e frutifique sob a luz do espírito Santo.
233. Nesta nova etapa evangelizadora, queremos que o diálogo e a cooperação ecumênica se encaminhem para despertar novas formas de discipulado e missão em comunhão. Cabe observar que onde se estabelece o diálogo, diminui o proselitismo, cresce o conhecimento recíproco e o respeito e se abrem possibilidades de testemunho comum.
234. Como resposta generosa à oração do Senhor “para que todos sejam um” (Jo 17,21), os Papas nos tem incentivado a avançar pacientemente no caminho da unidade. João Paulo II nos exorta: “No corajoso caminho para a unidade, a clareza e prudência da fé nos conduzem a evitar o falso irenismo e o desinteresse pelas normas da Igreja. Inversamente, a mesma clareza e a mesma prudência nos recomendam evitar a indiferença na busca da unidade e, mais ainda, a posição pré-concebida ou o derrotismo que tende a ver tudo como negativo”128. Bento XVI abriu seu pontificado dizendo: “Não bastam as manifestações de bons sentimentos. Fazem falta gestos concretos que penetrem nos espíritos e sacudam as consciências, impulsionando cada um à conversão interior, que é o fundamento de todo progresso no caminho do ecumenismo”129.
5.5.2 relação com o judaísmo e diálogo interreligioso
235. Reconhecemos com gratidão os laços que nos relacionam com o povo judeu, que nos une na fé no único Deus e sua palavra revelada no Antigo Testamento130. São nossos “irmãos maiores” na fé de Abraão, Isaque e Jacó. Dói em nós a história de desencontros que eles tem sofrido, também em nossos países. São muitas as causas comuns que na atualidade exigem maior colaboração e respeito mútuo.
236. Pelo sopro do Espírito Santo e outros meios conhecidos de Deus, a graça de Cristo pode alcançar a todos os que Ele redimiu, além da comunidade eclesial, porém de modos diferentes131. Explicitar e promover esta salvação já operante no mundo é uma das tarefas da Igreja com respeito às palavras do Senhor: “Sejam minhas testemunhas até os extremos da terra” (At 1,8).
237. O diálogo interreligioso, em especial com as religiões monoteístas, fundamenta-se justamente na missão que Cristo nos confiou, solicitando a sábia articulação entre o anúncio e o diálogo como elementos constitutivos da evangelização132. Com tal atitude, a Igreja, “sacramento universal de salvação”133, reflete a luz de Cristo que “ilumina a todo homem” (Jo 1,9). A presença da Igreja entre as religiões não cristãs é feita de empenho, discernimento e testemunho, apoiados na fé, esperança e caridade teologais134.
238. Mesmo quando o subjetivismo e a identidade pouco definida de certas propostas dificultam os contatos, isso não nos permite abandonar o compromisso e a graça do diálogo135. Em lugar de desistir, é necessário investir no conhecimento das religiões, no discernimento teológico-pastoral e na formação de agentes competentes para o diálogo interreligioso, atendendo às diferentes visões religiosas presentes nas culturas de nosso continente. O diálogo interreligioso não significa que deixar de anunciar a Boa Nova de Jesus Cristo aos povos não cristãos, mas com mansidão e respeito por suas convicções religiosas.
239. O diálogo interreligioso, além de seu caráter teológico, tem um especial significado na construção da nova humanidade: abre caminhos inéditos de testemunho cristão, promove a liberdade e dignidade dos povos, estimula a colaboração para o bem comum, supera a violência motivada por atitudes religiosas fundamentalistas, educa para a paz e para a convivência cidadã: é um campo de bem-aventuranças que são assumidas pela Doutrina Social da Igreja.
CAPÍTULO 6O CAMINHO DE FORMAÇÃO DOS DISCÍPULOS MISSIONÁRIOS
6.1 Uma espiritualidade trinitária do encontro com Jesus Cristo
240. Uma autêntica proposta de encontro com Jesus Cristo deve se estabelecer sobre o sólido fundamento da Trindade-Amor. A experiência de um Deus uno e trino, que é unidade e comunhão inseparável, permite-nos superar o egoísmo para nos encontrar plenamente no serviço para com o outro. A experiência batismal é o ponto de início de toda espiritualidade cristã que se funda na Trindade.
241. É Deus Pai que nos atrai por meio da entrega eucarística de seu Filho (cf. Jo 6,44), dom de amor com o qual saiu ao encontro de seus filhos, para que, renovados pela força do Espírito, possamos chamá-lo de Pai: “Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou seu próprio Filho, nascido de uma mulher, nascido sob o domínio da lei, para nos libertar do domínio da lei e fazer com que recebêssemos a condição de filhos adotivos de Deus. E porque já somos filhos, Deus enviou o Espírito de seu Filho a nossos corações e o Espírito clama: Abbá! Pai!” (Gl 4,4-5). Trata-se de uma nova criação, onde o amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo, renova a vida das criaturas.
242. Na história do amor trinitário, Jesus de Nazaré, homem como nós e Deus conosco, morto e ressuscitado, nos é dado como Caminho, Verdade e Vida. No encontro de fé com o inaudito realismo de sua Encarnação, podemos ouvir, ver com nossos olhos, contemplar e tocar com nossas mãos a Palavra de vida (cf. 1 Jo 1,1), experimentamos que “o próprio Deus vai atrás da ovelha perdida, a humanidade doente e extraviada. Quando em suas parábolas Jesus fala do pastor que vai atrás da ovelha desgarrada, da mulher que procura a dracma, do pai que sai ao encontro de seu filho pródigo e o abraça, não se trata só de meras palavras, mas da explicação de seu próprio ser e agir”136. Esta prova definitiva de amor tem o caráter de um esvaziamento radical (kenosis), porque Cristo “se humilhou a si mesmo fazendo-se obediente até a morte e morte de cruz” (Fl 2,8).
6.1.1 O encontro com Jesus Cristo
243. O acontecimento de Cristo é, portanto, o início desse sujeito novo que surge na história e a quem chamamos discípulo: “Não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande idéia, mas através do encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva”137. Isto é justamente o que, com apresentações diferentes, todos os evangelhos nos tem conservado como sendo o início do cristianismo: um encontro de fé com a pessoa de Jesus (cf. Jo 1,35-39).
244. A própria natureza do cristianismo consiste, portanto, em reconhecer a presença de Jesus Cristo e segui-lo. Essa foi a maravilhosa experiência daqueles primeiros discípulos que, encontrando Jesus, ficaram fascinados e cheios de assombro frente a excepcional idade de quem lhes falava, diante da maneira como os tratava, coincidindo com a fome e sede de vida que havia em seus corações. O evangelista João nos deixou por escrito o impacto que a pessoa de Jesus produziu nos primeiros discípulos que o encontraram, João e André. Tudo começa com uma pergunta: “que procuram?” (Jo 1,38). A essa pergunta seguiu um convite a viver uma experiência: “venham e verão” (Jo 1,39). Esta narração permanecerá na história como síntese única do método cristão.
245. No hoje do nosso continente latino-americano, levanta-se a mesma pergunta cheia de expectativa: “Mestre, onde vives?” (Jo 1,38), onde te encontramos de maneira adequada para “abrir um autêntico processo de conversão, comunhão e solidariedade?”138 Quais são os lugares, as pessoas, os dons que nos falam de ti, que nos colocam em comunhão contigo e nos permitem ser discípulos e teus missionários?
6.1.2 Lugares de encontro com Jesus Cristo
246. O encontro com Cristo, graças à ação invisível do Espírito Santo, realiza-se na fé recebida e vivida na Igreja. Com as palavras do papa Bento XVI repetimos com certeza: “A Igreja é nossa casa! Esta é nossa casa” Na Igreja católica temos tudo o que é bom, tudo o que é motivo de segurança e de consolo! Quem aceita a Cristo: Caminho, Verdade e Vida, em sua totalidade, tem garantida a paz e a felicidade, nesta e na outra vida!”139.
247. Encontramos Jesus na Sagrada Escritura, lida na Igreja. A Sagrada Escritura, “Palavra de Deus escrita por inspiração do Espírito Santo”140, é, com a Tradição, fonte de vida para a Igreja e alma de sua ação evangelizadora. Desconhecer a Escritura é desconhecer Jesus Cristo e renunciar a anunciá-lo. Daí o convite de Bento XVI: “Ao iniciar a nova etapa que a Igreja missionária da América Latina e do Caribe se dispõe a empreender, a partir desta V Conferência em Aparecida, é condição indispensável o conhecimento profundo e vivencial da Palavra de Deus, Por isto, é necessário educar o povo na leitura e na meditação da palavra: que ela se converta em seu alimento para que, por experiência própria, vejam que as palavras de Jesus são espírito e vida (cf. Jo 6,63). Do contrário, como vão anunciar uma mensagem cujo conteúdo e espírito não conhecem profundamente? É preciso fundamentar nosso compromisso missionário e toda nossa vida na rocha da Palavra de Deus”141.
248. Faz-se, pois, necessário propor aos fiéis a Palavra de Deus como dom do Pai para o encontro com Jesus Cristo vivo, caminho de “autêntica conversão e de renovada comunhão e solidariedade”142. Esta proposta será mediação de encontro com o Senhor se for apresentada a Palavra revelada, contida na Escritura, como fonte de evangelização. Os discípulos de Jesus desejam se alimentar com o Pão da Palavra: querem chegar à interpretação adequada dos textos bíblicos, emprega-los como mediação de diálogo com Jesus Cristo e a que sejam alma da própria evangelização e do anúncio de Jesus a todos. Por isto, a importância de uma “pastoral bíblica”, entendida como animação bíblica da pastoral, que seja escola de interpretação ou conhecimento da Palavra, de comunhão com Jesus ou oração com a Palavra, e de evangelização inculturada ou de proclamação da Palavra. Isto exige por parte dos bispos, presbíteros, diáconos e ministros leigos da Palavra uma aproximação à Sagrada Escritura que não seja só intelectual e instrumental, mas com um coração “faminto de ouvir a Palavra do Senhor” (Am 8,11).
249. Entre as muitas formas de se aproximar da Sagrada Escritura existe uma privilegiada à qual todos estamos convidados: a Lectio divina ou exercício de leitura orante da Sagrada Escritura. Esta leitura orante, bem praticada, conduz ao encontro com Jesus-Mestre, ao conhecimento do mistério de Jesus-Messias, à comunhão com Jesus-Filho de Deus e ao testemunho de Jesus-Senhor do universo. Com seus quatro momentos (leitura, meditação, oração, contemplação), a leitura orante favorece o encontro pessoal com Jesus Cristo semelhante ao modo de tantos personagens do evangelho: Nicodemos e sua ânsia de vida eterna (cf. Jo 3,1-21), a Samaritana e seu desejo de culto verdadeiro (cf. Jo 4,1-12), o cego de nascimento e seu desejo de luz interior (cf. Jo 9), Zaqueu e sua vontade de ser diferente (cf. Lc 19,1-10)... Todos eles, graças a este encontro, foram iluminados e recriados porque se abriram à experiência da misericórdia do Pai que se oferece por sua Palavra de verdade e vida. Não abriram seu coração para algo do Messias, mas ao próprio Messias, caminho de crescimento na “maturidade conforme a sua plenitude” (Ef 4,13), processo de discipulado, de comunhão com os irmãos e de compromisso com a sociedade.
250. Encontramos Jesus Cristo, de modo admirável, na Sagrada Liturgia. Ao vivê-la, celebrando o mistério pascal, os discípulos de Cristo penetram mais nos mistérios do Reino e expressam de modo sacramental sua vocação de discípulos e missionários. A Constituição sobre a Sagrada Liturgia do Vaticano II nos mostra o lugar e a função da liturgia no seguimento de Cristo, na ação missionária dos cristãos, na vida nova em Cristo e na vida de nossos povos n’Ele143.
251. A Eucaristia é o lugar privilegiado do encontro do discípulo com Jesus Cristo. Com este Sacramento, Jesus nos atrai para si e nos faz entrar em seu dinamismo em relação a Deus e ao próximo. Há um estreito vínculo entre as três dimensões da vocação cristã: crer, celebrar e viver o mistério de Jesus Cristo, de tal modo, que a existência cristã adquira verdadeiramente uma forma eucarística. Em cada Eucaristia, os cristãos celebram e assumem o mistério pascal, participando n’Ele. Portanto, os fiéis devem viver sua fé na centralidade do mistério pascal de Cristo através da Eucaristia, de maneira que toda sua vida seja cada vez mais vida eucarística. A Eucaristia, fonte inesgotável da vocação cristã é, ao mesmo tempo, fonte inextinguível do impulso missionário. Ali, o Espírito Santo fortalece a identidade do discípulo e desperta nele a decidida vontade de anunciar com audácia aos demais o que tem escutado e vivido.
252. Entende-se, assim, a grande importância do preceito dominical de “viver segundo o domingo”, com uma necessidade interior do cristão, da família cristã, da comunidade paroquial. Sem uma participação ativa na celebração eucarística dominical e nas festas de preceito não existirá um discípulo missionário maduro. Cada grande reforma na Igreja está vinculada ao redescobrimento da fé na Eucaristia144. Por causa disso, é importante promover a “pastoral do domingo” e dar a ela “prioridade nos programas pastorais”145 para um novo impulso na evangelização do povo de Deus no Continente latino-americano.
253. Com profundo afeto pastoral, queremos dizer, às milhares de comunidades com seus milhões de membros, que não têm a oportunidade de participar da Eucaristia dominical, que também elas podem e devem viver “segundo o domingo”. Elas podem alimentar seu já admirável espírito missionário participando da “celebração dominical da Palavra”, que faz presente o Mistério Pascal no amor que congrega (cf. 1 Jo 3,14), na Palavra acolhida (cf. Jo 5,24-25) e na oração comunitária (cf. Mt 18,20). Sem dúvida, os fiéis devem desejar a participação plena na Eucaristia dominical, pela qual também os motivamos a orar pelas vocações sacerdotais.
254. O sacramento da reconciliação é o lugar onde o pecador experimenta de maneira singular o encontro com Jesus Cristo, que se compadece de nós e nos dá o dom de seu perdão misericordioso, faz-nos sentir que o amor é mais forte que o pecado cometido, nos liberta de tudo o que nos impede de permanecer em seu amor, e nos devolve a alegria e o entusiasmo de anunciá-lo aos demais com o coração aberto e generoso.
255. A oração pessoal e comunitária é o lugar onde o discípulo, alimentado pela Palavra e pela Eucaristia, cultiva uma relação de profunda amizade com Jesus Cristo e procura assumir a vontade do Pai. A oração diária é um sinal do primado da graça no caminho do discípulo missionário. Por isso, “é necessário aprender a orar, voltando sempre a aprender esta arte dos lábios do Mestre”146.
256. Jesus está presente em meio a uma comunidade viva na fé e no amor fraterno. Ali Ele cumpre sua promessa: “Onde estão dois ou três reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18,20). Ele está em todos os discípulos que procuram fazer sua a existência de Jesus, e viver sua própria vida escondida na vida de Cristo (cf. Cl 3,3). Eles experimentam a força de sua ressurreição até se identificar profundamente com Ele: “Já não vivo eu, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Jesus está nos Pastores, que representam o próprio Cristo (cf. Mt 10,40; Lc 10,16). “Os Bispos tem sucedido, por instituição divina, aos Apóstolos, como Pastores da Igreja, de modo que quem os escuta, escuta a Cristo, e quem os despreza, despreza a Cristo e a quem ele enviou” (Lúmen Gentium, 20”. Está naqueles que dão testemunho de luta por justiça, pela paz e pelo bem comum, algumas vezes chegando a entregar a própria vida em todos os acontecimentos da vida de nossos povos, que nos convidam a procurar um mundo mais justo e mais fraterno em toda realidade humana, cujos limites às vezes causam dor e nos agoniam.
257. Também o encontramos de um modo especial nos pobres, aflitos e enfermos (cf. Mt 25,37-40), que exigem nosso compromisso e nos dão testemunho de fé, paciência no sofrimento e constante luta para continuar vivendo. Quantas vezes os pobres e os que sofrem realmente nos evangelizam! No reconhecimento desta presença e proximidade e na defesa dos direitos dos excluídos encontra-se a fidelidade da Igreja a Jesus Cristo147. O encontro com Jesus Cristo através dos pobres é uma dimensão constitutiva de nossa fé em Jesus Cristo. Da contemplação do rosto sofredor de Cristo neles148 e do encontro com Ele nos aflitos e marginalizados, cuja imensa dignidade Ele mesmo nos revela, surge nossa opção por eles. A mesma união a Jesus Cristo é a que nos faz amigos dos pobres e solidários com seu destino.
6.1.3 A piedade popular como lugar de encontro com Jesus Cristo
258. O Santo Padre destacou a “rica e profunda religiosidade popular, na qual aparece a alma dos povos latino-americanos, e a apresentou como “o precioso tesouro da Igreja católica na América Latina”149. Convidou a promovê-la e a protegê-la. Esta maneira de expressar a fé está presente de diversas formas em todos os setores sociais, em uma multidão que merece nosso respeito e carinho, porque sua piedade “reflete uma sede de Deus que somente os pobres e simples podem conhecer”150. A “religião do povo latino-americano é expressão da fé católica. É um catolicismo popular”151, profundamente inculturado, que contem a dimensão mais valiosa da cultura latino-americana.
259. Entre as expressões desta espiritualidade contam-se: as festas patronais, as novenas, os rosários e via crucis, as procissões, as danças e os cânticos do folclore religioso, o carinho aos santos e aos anjos, as promessas, as orações em família. Destacamos as peregrinações onde é possível reconhecer o Povo de Deus no caminho. Ali o cristão celebra a alegria de se sentir imerso em meio a tantos irmãos, caminhando juntos para Deus que os espera. O próprio Cristo se faz peregrino e caminha ressuscitado entre os pobres. A decisão de caminhar em direção ao santuário já é uma confissão de fé, o caminhar é um verdadeiro canto de esperança e a chegada é um encontro de amor. O olhar do peregrino se deposita sobre uma imagem que simboliza a ternura e a proximidade de Deus. O amor se detém, contempla o silêncio, desfruta dele em silêncio. Também se comove, derramando todo o peso de sua dor e de seus sonhos. A súplica sincera, que flui confiadamente, é a melhor expressão de um coração que renunciou à auto-suficiência, reconhecendo que sozinho, nada é possível. Um breve instante sintetiza uma viva experiência espiritual152.
260. Ali, o peregrino vive a experiência de um mistério que o supera, não só da transcendência de Deus, mas também da Igreja, que transcende sua família e seu bairro. Nos santuários, muitos peregrinos tomam decisões que marcam suas vidas. As paredes dos santuários contêm muitas histórias de conversão, de perdão e de dons recebidos que milhões poderiam contar.
261. A piedade popular penetra delicadamente a existência pessoal de cada fiel e ainda que se viva em uma multidão, não é uma “espiritualidade de massas”. Nos diferentes momentos da luta cotidiana, muitos recorrem a algum pequeno sinal do amor de Deus: um crucifixo, um rosário, uma vela que se acende para acompanhar um filho em sua enfermidade, um Pai Nosso recitado entre lágrimas, um olhar entranhável a uma imagem querida de Maria, um sorriso dirigido ao Céu em meio a uma simples alegria.
262. É verdade que a fé que se encarnou na cultura pode ser aprofundada e penetrar cada vez mais na forma de viver de nossos povos. Mas isso só pode acontecer se valorizarmos positivamente o que o Espírito Santo já semeou. A piedade popular é um “imprescindível ponto de partida para conseguir que a fé do povo amadureça e se faça mais fecunda”153. Por isso, o discípulo missionário precisa ser “sensível a ela, saber perceber suas dimensões interiores e seus valores inegáveis”154. Quando afirmamos que é necessário evangelizá-la ou purificá-la, não queremos dizer que esteja privada de riqueza evangélica. Simplesmente desejamos que todos os membros do povo fiel, reconhecendo o testemunho de Maria e também dos santos, procurem imitá-los cada dia mais. Assim procurarão um contato mais direto com a Bíblia e uma maior participação nos sacramentos, chegarão a desfrutar da celebração dominical da Eucaristia e viverão melhor o serviço do amor solidário. Por este caminho será possível aproveitar o mais rico potencial de santidade e de justiça social que encerra a mística popular.
263. Não podemos rebaixar a espiritualidade popular ou considerá-la um modo secundário da vida cristã, porque seria esquecer o primado da ação do Espírito e a iniciativa gratuita do amor de Deus. A piedade popular contém e expressa um intenso sentido da transcendência, uma capacidade espontânea de se apoiar em Deus e uma verdadeira experiência de amor teologal. É também uma expressão de sabedoria sobrenatural, porque a sabedoria do amor não depende diretamente da ilustração da mente, mas da ação interna da graça. Por isso, a chamamos de espiritualidade popular. Ou seja, uma espiritualidade cristã que, sendo um encontro pessoal com o Senhor, integra muito o corpóreo, o sensível, o simbólico e as necessidades mais concretas das pessoas. É uma espiritualidade encarnada na cultura dos simples, que nem por isso é menos espiritual, mas que o é de outra maneira.
264. A piedade popular é uma maneira legítima de viver a fé, um modo de se sentir parte da Igreja e uma forma de ser missionários, onde se recolhem as mais profundas vibrações da América Latina. É parte de uma “originalidade histórica cultural”155 dos pobres deste Continente, e fruto de “uma síntese entre as culturas e a fé cristã”156. No ambiente de secularização que vivem nossos povos, continua sendo uma poderosa confissão do Deus vivo que atua na história e um canal de transmissão da fé. O caminhar juntos para os santuários e o participar em outras manifestações da piedade popular, levando também os filhos ou convidando a outras pessoas, é em si mesmo um gesto evangelizador pelo qual o povo cristão evangeliza a si mesmo e cumpre a vocação missionária da Igreja.
265. Nossos povos se identificam particularmente com o Cristo sofredor, olham-no, beijam-no ou tocam seus pés machucados, como se dissessem: Este é “o que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20). Muitos deles golpeados, ignorados despojados, não abaixam os braços. Com sua religiosidade característica se agarram no imenso amor que Deus tem por eles e que lhes recorda permanentemente sua própria dignidade. Também encontram a ternura e o amor de Deus no rosto de Maria. Nela vem refletida a mensagem essencial do Evangelho. Nossa Mãe querida, desde o santuário de Guadalupe, faz sentir a seus filhos menores que eles estão na dobra de seu manto. Agora, desde Aparecida, convida-os a lançar as redes ao mundo, para tirar do anonimato aqueles que estão submersos no esquecimento e aproximá-los da luz da fé. Ela, reunindo os filhos, integra nossos povos ao redor de Jesus Cristo.
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