segunda-feira, 16 de setembro de 2013

CARTA ENCÍCLICA LUMEN FIDEI CAPÍTULO 1 * 1 A 21 DO SUMO PONTÍFICE FRANCISCO



CARTA ENCÍCLICA
LUMEN FIDEIDO SUMO PONTÍFICE
FRANCISCO
AOS BISPOS
AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS
SOBRE A FÉ

1. A luz da fé é a expressão com que a tradição da Igreja designou o grande dom 
trazido por Jesus. Eis como Ele Se nos apresenta, no Evangelho de João: « Eu vim ao mundo como luz, para que todo o que crê em Mim não fique nas trevas » (Jo 12, 46). E São Paulo exprime-se nestes termos: « Porque o Deus que disse: "das trevas brilhe a luz", foi quem brilhou nos nossos corações » (2 Cor 4, 6). No mundo pagão, com fome de luz, tinha-se desenvolvido o culto do deus Sol, Sol invictus, invocado na sua aurora. Embora o sol renascesse cada dia, facilmente se percebia que era incapaz de irradiar a sua luz sobre toda a existência do homem. De fato, o sol não ilumina toda a realidade, sendo os seus raios incapazes de chegar até às sombras da morte, onde a vista humana se fecha para a sua luz. Aliás « nunca se viu ninguém — afirma o mártir São Justino — pronto a morrer pela sua fé no sol ».[1] Conscientes do amplo horizonte que a fé lhes abria, os cristãos chamaram a Cristo o verdadeiro Sol, « cujos raios dão a vida ».[2] A Marta, em lágrimas pela morte do irmão Lázaro, Jesus diz-lhe: « Eu não te disse que, se acreditares, verás a glória de Deus? » (Jo 11, 40). Quem acredita, vê; vê com uma luz que ilumina todo o percurso da estrada, porque nos vem de Cristo ressuscitado, estrela da manhã que não tem ocaso.


LUZ DA FÉ
Uma luz ilusória?

2-  A fé aparecia como uma luz ilusória, 
que impedia o homem de cultivar a 
ousadia do saber. 

A fé seria uma espécie de ilusão de luz, 
que impede o nosso caminho de 
homens livres rumo ao amanhã.
PAPA FRANCISCO
LUZ DA FÉ
Uma luz ilusória?
2. E contudo podemos ouvir a objecção que se levanta de muitos dos nossos contemporâneos, quando se lhes fala desta luz da fé. Nos tempos modernos, pensou-se que tal luz poderia ter sido suficiente para as sociedades antigas, mas não servia para os novos tempos, para o homem tornado adulto, orgulhoso da sua razão, desejoso de explorar de forma nova o futuro. Nesta perspectiva, a fé aparecia como uma luz ilusória, que impedia o homem de cultivar a ousadia do saber. O jovem Nietzsche convidava a irmã Elisabeth a arriscar, percorrendo vias novas (…), na incerteza de proceder de forma autônoma ». E acrescentava: « Neste ponto, separam-se os caminhos da humanidade: se queres alcançar a paz da alma e a felicidade, contenta-te com a fé; mas, se queres ser uma discípula da verdade, então investiga ».[3] O crer opor-se-ia ao indagar. Partindo daqui, Nietzsche desenvolverá a sua crítica ao cristianismo por ter diminuído o alcance da existência humana, espoliando a vida de novidade e aventura. Neste caso, a fé seria uma espécie de ilusão de luz, que impede o nosso caminho de homens livres rumo ao amanhã.



LUZ DA FÉ
Uma luz ilusória?
3 A fé foi entendida como um salto no vazio, 
que fazemos por falta de luz e impelidos por 
um sentimento cego, ou como uma luz 
subjectiva, talvez capaz de aquecer o coração 
e consolar pessoalmente, mas impossível de 
ser proposta aos outros como luz objectiva e 
comum para iluminar o caminho.
Quando falta a luz, tudo se torna confuso: é 
impossível distinguir o bem do mal, diferenciar 
a estrada que conduz à meta daquela que nos 
faz girar repetidamente em círculo, sem 
direção.

LUZ DA FÉ
Uma luz ilusória?

3. Por este caminho, a fé acabou por ser associada com a escuridão. E, a fim de conviver com a luz da razão, pensou-se na possibilidade de a conservar, de lhe encontrar um espaço: o espaço para a fé abria-se onde a razão não podia iluminar, onde o homem já não podia ter certezas. Deste modo, a fé foi entendida como um salto no vazio, que fazemos por falta de luz e impelidos por um sentimento cego, ou como uma luz subjectiva, talvez capaz de aquecer o coração e consolar pessoalmente, mas impossível de ser proposta aos outros como luz objectiva e comum para iluminar o caminho. Entretanto, pouco a pouco, foi-se vendo que a luz da razão autônoma não consegue iluminar suficientemente o futuro; este, no fim de contas, permanece na sua obscuridade e deixa o homem no temor do desconhecido. E, assim, o homem renunciou à busca de uma luz grande, de uma verdade grande, para se contentar com pequenas luzes que iluminam por breves instantes, mas são incapazes de desvendar a estrada. Quando falta a luz, tudo se torna confuso: é impossível distinguir o bem do mal, diferenciar a estrada que conduz à meta daquela que nos faz girar repetidamente em círculo, sem direção.





CARTA ENCÍCLICA
LUMEN FIDEI DO SUMO PONTÍFICE
FRANCISCO

Uma luz a redescobrir

4- A luz da fé possui um 
carácter singular, sendo 
capaz de iluminar toda a 
existência do homem.
A fé não mora na escuridão, 
mas é uma luz para as nossas
trevas. 
A fé nasce no encontro com o 
Deus vivo, que nos chama e revela 
o seu amor: um amor que nos 
precede e sobre o qual podemos 
apoiar-nos para construir 
solidamente a vida. 
Uma luz a redescobrir
4. Por isso, urge recuperar o carácter de luz que é próprio da fé, pois, quando a sua chama se apaga, todas as outras luzes acabam também por perder o seu vigor. De facto, a luz da fé possui um carácter singular, sendo capaz de iluminar toda a existência do homem. Ora, para que uma luz seja tão poderosa, não pode dimanar de nós mesmos; tem de vir de uma fonte mais originária, deve porvir em última análise de Deus. A fé nasce no encontro com o Deus vivo, que nos chama e revela o seu amor: um amor que nos precede e sobre o qual podemos apoiar-nos para construir solidamente a vida. Transformados por este amor, recebemos olhos novos e experimentamos que há nele uma grande promessa de plenitude e se nos abre a visão do futuro. A fé, que recebemos de Deus como dom sobrenatural, aparece-nos como luz para a estrada orientando os nossos passos no tempo. Por um lado, provém do passado: é a luz duma memória basilar — a da vida de Jesus –, onde o seu amor se manifestou plenamente fiável, capaz de vencer a morte. Mas, por outro lado e ao mesmo tempo, dado que Cristo ressuscitou e nos atrai de além da morte, a fé é luz que vem do futuro, que descerra diante de nós horizontes grandes e nos leva a ultrapassar o nosso « eu » isolado abrindo-o à amplitude da comunhão. Deste modo, compreendemos que a fé não mora na escuridão, mas é uma luz para as nossas trevas. Dante, na Divina Comédia, depois de ter confessado diante de São Pedro a sua fé, descreve-a como uma « centelha / que se expande depois em viva chama / e, como estrela no céu, em mim cintila ». [4] É precisamente desta luz da fé que quero falar, desejando que cresça a fim de iluminar o presente até se tornar estrela que mostra os horizontes do nosso caminho, num tempo em que o homem vive particularmente carecido de luz.


Uma luz a redescobrir
5- Bento XVI quis proclamar o Ano da Fé, 
um tempo de graça que nos tem ajudado 
a sentir a grande alegria de crer, a 
reavivar a percepção da amplitude de 
horizontes que a fé descerra, para a 
confessar na sua unidade e integridade, 
fiéis à memória do Senhor, sustentados 
pela sua presença e pela ação do Espírito 
Santo. 
A convicção duma fé que faz grande e 
plena a vida, centrada em Cristo e na força 
da sua graça, animava a missão dos 
primeiros cristãos. 
Uma luz a redescobrir
5. Antes da sua paixão, o Senhor assegurava a Pedro: « Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça » (Lc 22, 32). Depois pediu-lhe para « confirmar os irmãos » na mesma fé. Consciente da tarefa confiada ao Sucessor de Pedro, Bento XVI quis proclamar este Ano da Fé, um tempo de graça que nos tem ajudado a sentir a grande alegria de crer, a reavivar a percepção da amplitude de horizontes que a fé descerra, para a confessar na sua unidade e integridade, fiéis à memória do Senhor, sustentados pela sua presença e pela ação do Espírito Santo. A convicção duma fé que faz grande e plena a vida, centrada em Cristo e na força da sua graça, animava a missão dos primeiros cristãos. Nas Atas dos Mártires, lemos este diálogo entre o prefeito romano Rústico e o cristão Hierax: « Onde estão os teus pais? » — perguntava o juiz ao mártir; este respondeu: « O nosso verdadeiro pai é Cristo, e nossa mãe a fé n’Ele ».[5] Para aqueles cristãos, a fé, enquanto encontro com o Deus vivo que Se manifestou em Cristo, era uma « mãe », porque os fazia vir à luz, gerava neles a vida divina, uma nova experiência, uma visão luminosa da existência, pela qual estavam prontos a dar testemunho público até ao fim.




6. O Ano da Fé teve início no cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II. Esta coincidência permite-nos ver que o mesmo foi um Concílio sobre a fé,[6] por nos ter convidado a repor, no centro da nossa vida eclesial e pessoal, o primado de Deus em Cristo. Na verdade, a Igreja nunca dá por descontada a fé, pois sabe que este dom de Deus deve ser nutrido e revigorado sem cessar para continuar a orientar o caminho dela. O Concílio Vaticano II fez brilhar a fé no âmbito da experiência humana, percorrendo assim os caminhos do homem contemporâneo. Desta forma, se viu como a fé enriquece a existência humana em todas as suas dimensões.



7. Estas considerações sobre a fé — em continuidade com tudo o que o magistério da Igreja pronunciou acerca desta virtude teologal [7] — pretendem juntar-se a tudo aquilo que Bento XVI escreveu nas cartas encíclicas sobre a caridadee a esperança. Ele já tinha quase concluído um primeiro esboço desta carta encíclica sobre a fé. Estou-lhe profundamente agradecido e, na fraternidade de Cristo, assumo o seu precioso trabalho, limitando-me a acrescentar ao texto qualquer nova contribuição. De facto, o Sucessor de Pedro, ontem, hoje e amanhã, sempre está chamado a « confirmar os irmãos » no tesouro incomensurável da fé que Deus dá a cada homem como luz para o seu caminho.

Na fé, dom de Deus e virtude sobrenatural por Ele infundida, reconhecemos que um grande Amor nos foi oferecido, que uma Palavra estupenda nos foi dirigida: acolhendo esta Palavra que é Jesus Cristo — Palavra encarnada –, o Espírito Santo transforma-nos, ilumina o caminho do futuro e faz crescer em nós as asas da esperança para o percorrermos com alegria. Fé, esperança e caridade constituem, numa interligação admirável, o dinamismo da vida cristã rumo à plena comunhão com Deus. Mas, como é este caminho que a fé desvenda diante de nós? Donde provém a sua luz, tão poderosa que permite iluminar o caminho duma vida bem sucedida e fecunda, cheia de fruto?


A plenitude da fé cristã
15. « Abraão (...) exultou pensando em ver o meu dia; viu-o e ficou feliz » (Jo 8, 56). De acordo com estas palavras de Jesus, a fé de Abraão estava orientada para Ele, de certo modo era visão antecipada do seu mistério. Assim o entende Santo Agostinho, quando afirma que os Patriarcas se salvaram pela fé; não fé em Cristo já chegado, mas fé em Cristo que havia de vir, fé proclive para o evento futuro de Jesus.[13] A fé cristã está centrada em Cristo; é confissão de que Jesus é o Senhor e que Deus O ressuscitou de entre os mortos (cf. Rm 10, 9). Todas as linhas do Antigo Testamento se concentram em Cristo: Ele torna-Se o « sim » definitivo a todas as promessas, fundamento último do nosso « Amen » a Deus (cf. 2 Cor 1, 20). A história de Jesus é a manifestação plena da fiabilidade de Deus. Se Israel recordava os grandes actos de amor de Deus, que formavam o centro da sua confissão e abriam o horizonte da sua fé, agora a vida de Jesus aparece como o lugar da intervenção definitiva de Deus, a suprema manifestação do seu amor por nós. A palavra que Deus nos dirige em Jesus já não é uma entre muitas outras, mas a sua Palavra eterna (cf. Heb 1, 1-2). Não há nenhuma garantia maior que Deus possa dar para nos certificar do seu amor, como nos lembra São Paulo (cf. Rm 8, 31-39). Portanto, a fé cristã é fé no Amor pleno, no seu poder eficaz, na sua capacidade de transformar o mundo e iluminar o tempo. « Nós conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele » (1 Jo 4, 16). A fé identifica, no amor de Deus manifestado em Jesus, o fundamento sobre o qual assenta a realidade e o seu destino último.


16. A maior prova da fiabilidade do amor de Cristo encontra-se na sua morte pelo homem. Se dar a vida pelos amigos é a maior prova de amor (cf. Jo 15, 13), Jesus ofereceu a sua vida por todos, mesmo por aqueles que eram inimigos, para transformar o coração. É por isso que os evangelistas situam, na hora da Cruz, o momento culminante do olhar de fé: naquela hora resplandece o amor divino em toda a sua sublimidade e amplitude. São João colocará aqui o seu testemunho solene, quando, juntamente com a Mãe de Jesus, contemplou Aquele que trespassaram (cf. Jo 19, 37): « Aquele que viu estas coisas é que dá testemunho delas e o seu testemunho é verdadeiro. E ele bem sabe que diz a verdade, para vós crerdes também » (Jo 19, 35). Na sua obra O Idiota, Fiódor Mikhailovich Dostoiévski faz o protagonista — o príncipe Myskin — dizer, à vista do quadro de Cristo morto no sepulcro, pintado por Hans Holbein o Jovem: « Aquele quadro poderia mesmo fazer perder a fé a alguém »;[14] de facto, o quadro representa, de forma muito crua, os efeitos destruidores da morte no corpo de Cristo. E todavia é precisamente na contemplação da morte de Jesus que a fé se reforça e recebe uma luz fulgurante, é quando ela se revela como fé no seu amor inabalável por nós, que é capaz de penetrar na morte para nos salvar. Neste amor que não se subtraiu à morte para manifestar quanto me ama, é possível crer; a sua totalidade vence toda e qualquer suspeita e permite confiar-nos plenamente a Cristo.



A plenitude da fé cristã
17. Ora, a morte de Cristo desvenda a total 
fiabilidade do amor de Deus à luz da sua 

ressurreição. Enquanto ressuscitado, Cristo é testemunha fiável, digna de fé (cf. Ap 1, 5; Heb 2, 17), apoio firme para a nossa fé. « Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé », afirma São Paulo (1 Cor 15, 17). Se o amor do Pai não tivesse feito Jesus 
ressurgir dos mortos, se não tivesse podido restituir a vida ao seu corpo, não 
seria um amor plenamente fiável, capaz de iluminar também as trevas da morte. 
Quando São Paulo fala da sua nova vida em Cristo, refere que a vive « na fé do Filho de Deus que me amou e a Si mesmo Se entregou por mim » (Gl 2, 20). 
Esta « fé do Filho de Deus » é certamente a fé 
do Apóstolo dos gentios em Jesus, mas supõe também a fiabilidade de Jesus, que se funda, sem dúvida, no seu amor até à morte, mas também no facto de Ele ser Filho de Deus. Precisamente porque é o Filho, porque está radicado de modo absoluto no Pai, Jesus pôde vencer a morte e fazer resplandecer em plenitude a vida. A nossa cultura perdeu a noção desta presença concreta de Deus, da sua ação no mundo; pensamos que Deus Se encontra só no além, noutro nível de realidade, separado das nossas relações concretas. Mas, se fosse assim, isto é, se Deus fosse incapaz de agir no mundo, o seu amor não seria verdadeiramente poderoso, verdadeiramente real e, por conseguinte, não seria sequer verdadeiro amor, capaz de cumprir a felicidade que promete. E, então, seria completamente indiferente crer ou não crer n’Ele. Ao contrário, os cristãos confessam o amor concreto e poderoso de Deus, que atua verdadeiramente na história e determina o seu destino final; um amor que se fez passível de encontro, que se revelou em plenitude na paixão, morte e ressurreição de Cristo.

 17. « Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé », 

afirma São Paulo (1 Cor 15, 17). 
Se o amor do Pai não tivesse feito Jesus ressurgir 
dos mortos, se não tivesse podido restituir a vida 
ao seu corpo, não seria um amor plenamente 
fiável, capaz de iluminar também as trevas da 
morte. 
Se cristãos confessam o amor concreto e 
poderoso de Deus, que atua verdadeiramente 
na história e determina o seu destino final; 
um amor que se fez passível de encontro, que 
se revelou em plenitude na paixão, morte e 
ressurreição de Cristo.



CAPÍTULO 1

ACREDITAMOD NO AMOR
A plenitude da fé cristã
18. A plenitude a que Jesus leva a fé possui outro aspecto decisivo: na fé, Cristo

 não é apenas Aquele em quem acreditamos, a maior manifestação do amor de 
Deus, mas é também Aquele a quem nos unimos para poder acreditar. A fé não 
só olha para Jesus, mas olha também a partir da perspectiva de Jesus e com os 
seus olhos: é uma participação no seu modo de ver. 
Em muitos âmbitos da vida, fiamo-nos de outras pessoas que conhecem as 
coisas melhor do que nós: temos confiança no arquitecto que constrói a nossa 
casa, no farmacêutico que nos fornece o remédio para a cura, no advogado que 
nos defende no tribunal. Precisamos também de alguém que seja fiável e perito 
nas coisas de Deus: Jesus, seu Filho, apresenta-Se como Aquele que nos 
explica Deus (cf. Jo 1, 18). A vida de Cristo, a sua maneira de conhecer o Pai, de 
viver totalmente em relação com Ele abre um espaço novo à experiência humana, 
e nós podemos entrar nele. São João exprimiu a importância que a relação pessoal
com Jesus tem para a nossa fé, através de vários usos do verbo crer. 
Juntamente com o « crer que » é verdade o que Jesus nos diz (cf. Jo 14, 10; 
20, 31), João usa mais duas expressões: « crer a (sinônimo de dar crédito a) » 
Jesus e « crer em » Jesus. « Cremos a » Jesus, quando aceitamos a sua palavra, 
o seu testemunho, porque Ele é verdadeiro (cf. Jo 6, 30). « Cremos em » Jesus,
quando O acolhemos pessoalmente na nossa vida e nos confiamos a Ele, aderindo 
a Ele no amor e seguindo-O ao longo do caminho (cf. Jo 2, 11; 6, 47; 12, 44).
Para nos permitir conhecê-Lo, acolhê-Lo e segui-Lo, o Filho de Deus assumiu a 
nossa carne; e, assim, a sua visão do Pai deu-se também de forma humana, através
de um caminho e um percurso no tempo. A fé cristã é fé na encarnação do Verbo e 
na sua ressurreição na carne; é fé num Deus que Se fez tão próximo que entrou 
na nossa história. A fé no Filho de Deus feito homem em Jesus de Nazaré não 
nos separa da realidade; antes permite-nos individuar o seu significado mais profundo, descobrir quanto Deus ama este mundo e o orienta sem cessar para Si; e isto leva o cristão a comprometer-se, a viver de modo ainda mais intenso o seu caminho sobre a terra.




A plenitude da fé cristã
18. A plenitude a que Jesus leva a fé possui outro aspecto decisivo: 

na fé, Cristo não é apenas Aquele em quem acreditamos, a maior
manifestação do amor de Deus, mas é também Aquele a quem nos 
unimos para poder acreditar. 
A fé no Filho de Deus feito homem em Jesus de Nazaré não nos separa 
da realidade; antes permite-nos individuar o seu significado mais 
profundo, descobrir quanto Deus ama este mundo e o orienta sem 
cessar para Si; e isto leva o cristão a comprometer-se, a viver de modo 
ainda mais intenso o seu caminho sobre a terra.



CAPÍTULO 1
ACREDITANDO NO AMOR
A salvação pela fé
19. A partir desta participação no modo de ver de Jesus, o apóstolo Paulo 
deixou-nos, nos seus escritos, uma descrição da existência crente. Aquele 
que acredita, ao aceitar o dom da fé, é transformado numa nova criatura, 
recebe um novo ser, um ser filial, torna-se filho no Filho: « Abbá, Pai » é
 a palavra mais característica da experiência de Jesus, que se torna centro 
da experiência cristã (cf. Rm 8, 15). A vida na fé, enquanto existência filial, 
é reconhecer o dom originário e radical que está na base da existência do 
homem, podendo resumir-se nesta frase de São Paulo aos Coríntios: 
« Que tens tu que não tenhas recebido? » (1 Cor 4, 7). É precisamente aqui 
que se situa o cerne da polêmica do Apóstolo com os fariseus: a discussão
 sobre a salvação pela fé ou pelas obras da lei. Aquilo que São Paulo rejeita
 é a atitude de quem se quer justificar a si mesmo diante de Deus através 
das próprias obras; esta pessoa, mesmo quando obedece aos mandamentos, 
mesmo quando realiza obras boas, coloca-se a si própria no centro e não
 reconhece que a origem do bem é Deus. Quem actua assim, quem quer 
ser fonte da sua própria justiça, depressa a vê exaurir-se e descobre que não 
pode sequer aguentar-se na fidelidade à lei; fecha-se, isolando-se do Senhor 
e dos outros, e, por isso, a sua vida torna-se vã, as suas obras estéreis, como
 árvore longe da água. Assim se exprime Santo Agostinho com a sua linguagem 
concisa e eficaz: « Não te afastes d’Aquele que te fez, nem mesmo para te
 encontrares a ti ».[15] Quando o homem pensa que, afastando-se de Deus,
 encontrar-se-á a si mesmo, a sua existência fracassa (cf. Lc 15, 11-24). O início 
da salvação é a abertura a algo que nos antecede, a um dom originário que 
sustenta a vida e a guarda na existência. Só abrindo-nos a esta origem e 
reconhecendo-a é que podemos ser transformados, deixando que a salvação
 atue em nós e torne a vida fecunda, cheia de frutos bons. A salvação pela fé 
consiste em reconhecer o primado do dom de Deus, como resume São Paulo:
 « Porque é pela graça que estais salvos, por meio da fé. E isto não vem de vós, 
é dom de Deus » (Ef 2, 8).



CAPÍTULO 1
ACREDITANDO NO AMOR

A salvação pela fé
20. A nova lógica da fé centra-se em Cristo. 
A fé em Cristo salva-nos, porque 
é n’Ele que a vida se abre radicalmente a um Amor que nos precede 
e transforma 
a partir de dentro, que age em nós e connosco. Vê-se isto claramente na exegese 
que o Apóstolo dos gentios faz de um texto do Deuteronómio; uma exegese que 
se insere na dinâmica mais profunda do Antigo Testamento. Moisés diz ao povo 
que o mandamento de Deus não está demasiado alto nem demasiado longe do 
homem; não se deve dizer: « Quem subirá por nós até ao céu e no-la irá buscar? 
» ou « Quem atravessará o mar e no-la irá buscar? » (cf. Dt 30, 11-14). Esta 
proximidade da palavra de Deus é concretizada por São Paulo na presença de 
Jesus no cristão. « Não digas no teu coração: Quem subirá ao céu? Seria para
fazer com que Cristo descesse. Nem digas: Quem descerá ao abismo? Seria para
 fazer com que Cristo subisse de entre os mortos » (Rm 10, 6-7). Cristo desceu à
 terra e ressuscitou dos mortos: com a sua encarnação e ressurreição, o Filho de 
Deus abraçou o percurso inteiro do homem e habita nos nossos corações por meio 
do Espírito Santo. A fé sabe que Deus Se tornou muito próximo de nós, que Cristo 
nos foi oferecido como grande dom que nos transforma interiormente, que habita 
em nós, e assim nos dá a luz que ilumina a origem e o fim da vida, o arco inteiro do 
percurso humano.





CAPÍTULO 1
ACREDITANDO NO AMOR
A salvação pela fé
21. Podemos assim compreender a novidade, a que a fé nos conduz. 
O crente é transformado pelo Amor, ao qual se abriu na fé; e, na sua 
abertura a este Amor que lhe é oferecido, a sua existência dilata-se 
para além dele próprio. 
São Paulo pode afirmar: « Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que 
vive em mim » (Gl 2, 20), e exortar: « Que Cristo, pela fé, habite nos 
vossos corações » (Ef 3, 17). 
Na fé, o « eu » do crente dilata-se para ser habitado por um Outro, 
para viver num Outro, e assim a sua vida amplia-se no Amor. 
É aqui que se situa a ação própria do Espírito Santo: o cristão pode 
ter os olhos de Jesus, os seus sentimentos, a sua predisposição 
filial, porque é feito participante do seu Amor, que é o Espírito; é 
neste Amor que se recebe, de algum modo, a visão própria de 
Jesus. 
Fora desta conformação no Amor, fora da presença do Espírito 
que o infunde nos nossos corações (cf. Rm 5, 5), é impossível 
confessar Jesus como Senhor (cf. 1 Cor 12, 3).



CAPÍTULO 1

ACREDITANDO NO AMOR
A forma eclesial da fé


22. Deste modo, a vida do fiel torna-se existência eclesial. Quando São Paulo fala aos cristãos de Roma do único corpo que todos os crentes formam em Cristo, exorta-os a não se vangloriarem, mas a avaliarem-se « de acordo com a medida de fé que Deus distribuiu a cada um » (Rm 12, 3). O crente aprende a ver-se a si mesmo a partir da fé que professa. A figura de Cristo é o espelho em que descobre realizada a sua própria imagem. E dado que Cristo abraça em Si mesmo todos os crentes que formam o seu corpo, o cristão compreende-se a si mesmo neste corpo, em relação primordial com Cristo e os irmãos na fé. A imagem do corpo não pretende reduzir o crente a simples parte de um todo anônimo  a mero elemento de uma grande engrenagem; antes, sublinha a união vital de Cristo com os crentes e de todos os crentes entre si (cf. Rm 12, 4-5). Os cristãos sejam « todos um só » (cf. Gl 3, 28), sem perder a sua individualidade, e, no serviço aos outros, cada um ganha profundamente o próprio ser. Compreende-se assim por que motivo, fora deste corpo, desta unidade da Igreja em Cristo — desta Igreja que, segundo as palavras de Romano Guardini, « é a portadora histórica do olhar global de Cristo sobre o mundo »,[16] —, a fé perca a sua « medida », já não encontre o seu equilíbrio, nem o espaço necessário para se manter de pé. A fé tem uma forma necessariamente eclesial, é professada partindo do corpo de Cristo, como comunhão concreta dos crentes. A partir deste lugar eclesial, ela abre o indivíduo cristão a todos os homens. Uma vez escutada, a palavra de Cristo, pelo seu próprio dinamismo, transforma-se em resposta no cristão, tornando-se ela mesma palavra pronunciada, confissão de fé. São Paulo afirma: « Realmente com o coração se crê (…) e com a boca se faz a profissão de fé » (Rm 10, 10). A fé não é um fato privado, uma concepção individualista, uma opinião subjectiva, mas nasce de uma escuta e destina-se a ser pronunciada e a tornar-se anúncio. Com efeito, « como hão-de acreditar n’Aquele de quem não ouviram falar? E como hão-de ouvir falar, sem alguém que O anuncie? (Rm 10, 14). Concluindo, a fé torna-se operativa no cristão a partir do dom recebido, a partir do Amor que o atrai para Cristo (cf. Gl 5, 6) e torna participante do caminho da Igreja, peregrina na história rumo à perfeição. Para quem foi assim transformado, abre-se um novo modo de ver, a fé torna-se luz para os seus olhos.

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